Vou tratá-lo por João, nome que ele não tem no registro de nascimento. Já era homem feito quando eu ingressava na adolescência. Alto, a...

Dizer ''trinta-e-três''

cebolinha gibi medico miguel nicolelis
Vou tratá-lo por João, nome que ele não tem no registro de nascimento. Já era homem feito quando eu ingressava na adolescência. Alto, atlético e bonito, chamava, naquele tempo, a atenção do público feminino por onde andasse. Sei de mocinhas apaixonadíssimas e de algumas disputas, quase aos tabefes, por aquele suposto coração de pedra. A muitas esse camarada parecia tão belo quanto desdenhoso, indiferente, seletivo.

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Assim também ele me parecia até que, já grisalho e bem-casado, contou-me da timidez agravada pela dislalia. Sabem não? É o distúrbio da fala caracterizado pela dificuldade da correta pronúncia das palavras. No caso dele, ocorriam as trocas do “r” pelo “l”. O personagem “Cebolinha”, criação de Maurício de Sousa, exemplifica bem isso de que trato.

Mais comum em crianças, a dislalia perseguiu meu amigo até a fase adulta. Nada, porém, que um bom fonoaudiólogo não fosse capaz de resolver. Seu caso foi tão bem resolvido que lhe rendeu Cristina, a moça mais bonita da cidade. Enquanto conversávamos, longe dela, evidentemente, sobre corações arrebentados em razão do seu aparente desprezo a uma fileira de admiradoras confessas, ou enrustidas, ele me contou do constrangimento num consultório médico, aos 20 e poucos anos de idade. O “trinta-e-três” que o doutor lhe pedia resultava em um “tlinta-e-tlês” imprestável à boa ausculta pulmonar. Nosso João, superado o problema, contava isso como uma anedota ao cabo da qual ele próprio era quem mais ria.

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O que o frustrava no auge da mocidade é o que, por razão inversa, me frustra até agora: Nunca pneumologista nenhum me pediu para dizer “trinta-e-três” em consultas dessa natureza. Como eu capricharia nisso! Porém, quando as gripes fortes põem chiados no meu peito o máximo que me pedem, com estetoscópios nas minhas costas, é para encher e secar os pulmões, longa e vagarosamente. Isso lhes basta à avaliação do meu “frêmito torácico”, vejam só que forte e proeminente expressão. A falta de tal pedido me é tamanha que eu o suponho desnecessário e só ocorrente em piadas.

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Dias atrás, a imperdível confraternização natalina dos editores, colaboradores e admiradores do Ambiente de Leitura Carlos Romero proporcionou-me o grato reencontro com José Mário Espínola, cardiologista dos bons e homem de pena leve e saborosa. Pois não é que eu esqueci de indagá-lo sobre as solicitações do “trinta-e-três”!... O Dr. Zé Mário, embora atuante (com o melhor dos conceitos) em outro ramo da Medicina, poderia me esclarecer a questão.

A impaciência me fez desistir do gabinete do também cardiologista Nominando Diniz. Este último compôs como estagiário a equipe do Dr. Euryclides Zerbini, responsável pelo primeiro transplante de coração da América Latina, em 1968. A política empurraria Nominando para a vida pública e assim o faria, posteriormente, o Tribunal de Contas da Paraíba, ele no quadro de conselheiro e eu, também ali, no da Assessoria de Imprensa. Ou seja, topamos um com o outro quase diariamente.

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Porém, impaciente como sou, já recorri a um desses aplicativos de Inteligência Artificial para as respostas que eu pretendia obter. Sim, há médicos que ainda pedem o “trinta-e-três” a seus pacientes com o propósito de verificar a possível ocorrência de problemas pulmonares, como acúmulo de líquidos, ou de ar. A fala do número em questão, em bom português, possui sonoridade e vibração suficientes para diagnósticos de pneumonia, edema, pleurite, ou enfisema. A coisa funciona, entretanto, por vias tortas: quanto mais seja a sonoridade da pronúncia abafada e distorcida, mais saudável estará o pulmão assim auscultado. Em outras palavras, um pulmão com patologias transmite som de forma mais clara e nítida.

Ressalto que não resisti a outras consultas do gênero à mesma fonte. Perguntei se há expressões, ou palavras, em outros idiomas com idênticas equivalência e finalidade. “Sim”, foi a resposta que obtive.

Fale-se a língua que se falar, a técnica é a da broncofonia. E vieram os exemplos: “Say ninety-nine”, pediria um falante de inglês ao seu paciente. Se for francês, ao invés desse
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“noventa-e-nove”, o camarada adoentado ouviria pedido semelhante ao nosso: “Dites trinte-trois”.

Pacientes e médicos espanhóis também preferem, às suas maneiras, nosso “trinta-e-três”. Os alemães, não. Estes vão mesmo de "neunundneunzig", o “noventa-e-nove” dos falantes de inglês, o que me permite supor que tais usos são próprios de cada ramo linguístico. Fecho esse entendimento ante o pedido do médico italiano àquele, ou àquela, sob seus cuidados: “Dica trentatré”.

Não me culpem os especialistas se assim não for. Garanto, todavia, que isso me foi dito pela IA por mim consultada. No caso dos desmentidos, abraçarei de vez a impressão do neurocientista brasileiro Miguel Nicolelis (pioneiro nas pesquisas de interfaces cérebro-máquina e citado, portanto, entre os 20 mais importantes cientistas da atualidade), para quem essa coisa nem é inteligência nem artificial. Será minha vingança.

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  1. O cronista em pleno domínio do seu ofício. Parabéns, Frutuoso. Francisco Gil Messias.

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