Despertei para os livros olhando a estante no escritório do meu pai. Aqueles volumes massudos assustavam,...

Sem prazer não há leitura

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Despertei para os livros olhando a estante no escritório do meu pai. Aqueles volumes massudos assustavam, ainda não me diziam nada, mas tinham algo de imponente que soava como um desafio. O que havia neles? E por que o “Velho” os abria e ficava horas contemplando o seu interior?

Essa impressão de criança foi se desfazendo à medida que eu crescia e tinha acesso aos gibis. Um gibi colorido, com desenhos de mocinhos e bandidos, era o correspondente das obras “sérias” que preenchiam a estante. Quem vem a gostar de ler começa pelas histórias
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GD'Art
em quadrinhos, disso não tenho dúvida. E tal contatação me leva a outra, que as famílias e sobretudo as escolas deveriam ter em mente: deve-se ler basicamente o que se gosta.

Montaigne afirma com escancarada franqueza, em um dos “Ensaios”, que não hesita em deixar de lado um livro que o aborreça. Por mais que a obra seja festejada pelos críticos, e conhecê-la apareça como um atestado de erudição, ele suspende a leitura se tem que se esforçar para entender a mensagem do autor. Não à toa, cunhou a célebre resposta a alguém que lhe perguntara quais as três principais virtudes de um texto: clareza, clareza, clareza.

Destaquei acima as escolas porque comumente são elas que indispõem a juventude à leitura. E como fazem isso? Indicando autores para os quais os jovens não estão preparados. Pedindo-lhes, por exemplo, que leiam Machado de Assis quando o que os motiva é um texto que contenha uma história fácil de acompanhar e entender. Algo em que fique clara a oposição entre heróis e vilões.

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Richard S. Prather@ereads.com/
Machado é um gênio, nosso maior escritor, mas eu possivelmente não teria me devotado à leitura se meu pai tivesse me obrigado a ler muito cedo “Memórias póstumas” ou “Dom Casmurro” – em vez me trazer livros de Richard Prather e Erle Stanley Gardner, que contam as investigações do detetive Shell Scott e as contendas judiciais do advogado Perry Mason. Com que prazer eu recebia esses livros nos fins de semana e os devorava, atento aos mistérios embutidos na trama. Era mais fácil acompanhá-los do que tentar desvendar o enigma de Capitu, cuja traição incessantemente divide opiniões.

Para chegar a Machado, é preciso primeiro arar a inteligência com instrumentos menos prospectivos e mais aptos o despertar a imaginação. Barthes distingue o texto de prazer, que distrai e conforta, do texto de fruição, que provoca no leitor questionamentos sobre a cultura e a linguagem. As obras de Machado, sobretudo a partir de “Memórias póstumas”, se enquadram no segundo tipo. Mais do que à trama, demandam atenção ao estilo, no qual repousa a célebre ironia. Isso exige sobretudo leitor.

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Machado de Assis Fapesp
Referi Machado porque, na qualidade de professor também do Ensino Médio, vivenciei em sala de aula a dificuldade dos alunos com seus textos. Se por vezes a leitura é árdua para os que terminam o segundo grau, imagino a dificuldade que traz aos que cursam as séries anteriores e são compelidos pela escola a ler seus livros. Por dificuldade semelhante passam os que, ainda com incipiente formação, deparam-se com as obras de uma Clarice Lispector ou de um Guimarães Rosa. É difícil que superem a barreira da linguagem, e sem isso não terão como captar as peripécias do enredo.

A leitura, então, é primeiro prazer – e assim deve continuar sendo. Para chegar a Jorge Amado, José Lins do Rego, Graciliano Ramos e outros grandes romancistas nossos, é preciso começar pelos quadrinhos, ir talvez aos livros de bolso, e a partir daí estabelecer o definitivo e gratificante vínculo com a palavra escrita. Com o tempo, a leitura mais densa dos clássicos vai dar a real dimensão da alma humana com seus abismos de sonho e medo. E sobretudo vai dimensionar a amplitude da nossa solidão, que só a leitura de um grande livro pode preencher.

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  1. Perfeito, Chico. O mesmo Montaigne adotou como lema em sua biblioteca: "Só faço o que me dá alegria". Parabéns. Francisco Gil Messias.

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