Convidei a saudade para falar de você. Em instantes me vi acompanhado de mim mesmo tão somente. Havia duas criaturas travando aquele sentimento que flui pelos dedos, quase como um semblante ruim. Mas era apenas saudade, que florece e molha as flores de uma poesia. Alimenta, mas também retira um pouco de tudo. Por vezes, deveria virar semente, porque é eterna e deve voltar mais forte para oferecer outra sombra de alívio.
A. Legros, S.XIX
Outra existência primorosa que possa travar novas expectativas e proporcionar a realização de sonhos.
A falta é um vazio simples, um lugar vago na agenda, um talher a menos na mesa, é mais complexa. Ela é a presença do ausente. É a sombra que teima em ficar onde a luz já não está. Acontece nos detalhes insignificantes.
Você abre um armário e um cheiro vem te visitar. Não um perfume marcante, mas o cheiro da roupa lavada da casa da sua avó, mistura de sabão em pó e brisa do varal. Por um segundo, você não se lembra dela doente ou velha. Recorda o jeito que ela arrumava os lençóis, com cantos perfeitamente esticados, e do som da sua voz cantarolando uma canção que ninguém mais conhece. Aí a memória some, mas o cheiro fica, e, com ele, uma pontada no peito que não é tristeza pura. É uma espécie de gratidão dolorida. Ela mora nos hábitos que ficam.
A. Legros, S.XIX
Você ainda pega dois copos ao buscar água, antes de se lembrar que agora bebe sozinho. A mão ainda se estende para dividir um pedaço de notícia boba do jornal com alguém que já não está ao seu lado. O corpo tem memória. Ele é um animal de costumes que se recusa a aceitar a nova geografia da solidão. Esses gestos fantasmas são as pegadas da saudade no chão da rotina.
Às vezes, ela é silenciosa e amena, como a luz do final de tarde que entra pela sala vazia, dourando o pó no ar. Outras, é uma visita barulhenta e desgrenhada, que chega com uma música na estação de rádio, um pedaço de filme, o jeito de um estranho rir na mesa ao lado. De repente, você é inundado por um mar de um passado que não volta. E não há o que fazer a não ser deixar a onda passar, sentindo o sal do que foi ficar nos lábios.
Dizem que a saudade é a prova de que amamos. Talvez seja mais do que isso. É a prova de que fomos transformados pelo outro. A pessoa se vai, o amor fica, e a saudade é o eco desse amor, reverberando nos cômodos vazios da alma. Ela não é um buraco, é um molde. A forma exata de quem partiu... impressa em nós.
A. Legros, S.XIX
No fim, aprendemos a conviver com essa inquilina. Não a sufocamos de todo, pois seria como trair o que vivemos. Também não a deixamos tomar conta da casa. Apenas arrumamos um quarto para ela se acomodar, para pode vir e ficar à vontade. Muitas vezes vezes, até a convidamos para o café, olhamos os álbuns de fotografias e rimos com um sorriso que tem um pouquinho de lágrima no canto do olho.
Porque a saudade, no fundo, é um paradoxo gentil. É a dor que sussurra: "olha como foi bom". É a marca deixada por algo que valeu a pena. E enquanto ela durar, enquanto aquele cheiro, aquele gesto automático, aquele pedaço de luz nos fizerem parar por um segundo, eles estarão vivos. Não como eram, mas como são: eternos na frágil e resistente morada que lhes construímos dentro do peito.
Tecnicamente tudo na vida é uma perda de tempo, então, procure perder da melhor forma.