Refletindo sobre a leitura das três primeiras estrofes de Os Lusíadas, que correspondem à Proposição do poema, dá para perceber a complexidade do que se diz, o mais das vezes de modo simples na expressão, mesmo com as inversões sintáticas de praxe, mas com uma construção, em direção à significância, que exige muito do leitor.
Arma uirumque cano, Troiae qui primus ab oris
Italiam, fato profugus, Lauiniaque uenit
litora, multum ille et terris iactatus et alto
ui superum saeuae memorem Iunonis ob iram;
multa quoque et bello passus, dum conderet urbem, 5
inferretque deos Latio, genus unde Latinum,
Albanique patres, atque altae moenia Romae.
Musa, mihi causas memora, quo numine laeso,
quidue dolens, regina deum tot uoluere casus
insignem pietate virum, tot adire labores 10
impulerit. Tantaene animis caelestibus irae?
Eu canto as armas e o herói que, das margens de Tróia, banido pelo fado,
primeiro chegou à Itália e aos litorais Lavínios,
por muito tempo, foi jogado de um lado a outro, nas terras e no mar,
pelo poder dos deuses Superiores e pela ira memorável da cruel Juno;
muito também sofreu na guerra, ao tempo em que fundava a cidade 5
e transportava seus deuses para o Lácio, de onde veio a gente Latina
e os nossos pais Albanos e as muralhas da altiva Roma.
Musa, lembra-me as causas, por que poder ofendido
ou por que, ferindo, a rainha dos deuses terá levado
um herói insigne pela piedade a lançar-se em tanto infortúnio, 10
a expor-se a tantas provações. Tantas iras existem nos ânimos celestes?
Do Proêmio, destacamos o hemistíquio do verso inicial – Arma uirumque cano – e a nova referência ao herói – insignem... uirum do verso 10,
A transformação de dois hexâmetros latinos em uma frase é necessária para que se revele o processo da tessitura poética, a partir do qual Camões cria um épico, retomando a tradição, não só no gênero, mas nos detalhes da composição do seu poema, e, claro, no seu conteúdo. Entenda-se que, nessa criação, o poeta lusitano não recusa a tradição, mas também não se lhe torna subserviente, como veremos, posteriormente.
A partir da junção operada nos versos de Virgílio, percebe-se, claramente, que o verso inicial de Os Lusíadas encontra-se muito próximo da tradução daquilo que se diz da essência do herói latino:
Arma insignem uirumque cano (Eu canto as armas e o herói insigne)
As armas e os barões assinalados
1.
As armas e os barões assinalados
Que, da Ocidental praia Lusitana,
Por mares nunca de antes navegados,
Passaram ainda além da Taprobana,
Em perigos e guerras esforçados
Mais do que prometia a força humana,
E entre gente remota edificaram
Novo Reino, que tanto sublimaram;
2.
E também as memórias gloriosas
Daqueles Reis que foram dilatando
A Fé e o Império, e as terras viciosas
De África e de Ásia andaram devastando,
E aqueles que por obras valerosas
Se vão da lei da Morte libertando:
Cantando espalharei por toda parte,
Se a tanto me ajudar o engenho e arte.
3.
Cessem do sábio Grego e do Troiano
As navegações grandes que fizeram;
Cale-se de Alexandro e de Trajano
A fama das vitórias que tiveram;
Que eu canto o peito ilustre Lusitano,
A quem Neptuno e Marte obedeceram.
Cesse tudo o que a Musa antiga canta,
Que outro valor mais alto se alevanta.
Considere-se que barões é a forma alternativa para varões, designando o homem viril, o herói, mais do que o barão, como título nobiliárquico. Já na poesia de Virgílio, o herói é designado pelo termo uir (varão, homem do sexo masculino), com o sentido de herói (no texto encontra-se no acusativo, daí a forma uirum, por tratar-se
Sabemos ser Eneias o uir não nomeado por Virgílio, identificado como um herói insigne, o que significa ter sido marcado pelos deuses com um sinal (in + signum, em quem há um sinal), no caso a piedade, como se pode ver no verso 10 (insignem pietate uirum). Eneias é o herói pio, sendo a piedade um dos seus atributos mais importantes na Eneida, diferenciando-o com relação aos demais companheiros. Insigne, portanto, é adjetivo semelhante ao assinalados, utilizado por Camões. A diferença consiste no fato de que Eneias é o herói assinalado pelo fado, o destino, que está nas mãos dos deuses. A sua saída de Troia, quando da destruição da cidade pelos gregos, não é só para evitar a sua morte, mas para que se cumpra a determinação divina de fundação de uma nova Troia, sob o seu comando. Daí a necessidade de Eneias fazer uma viagem pelo mar e pelas terras, até chegar ao Ocidente, nas terras de Hespéria, onde deverá fundar um reino, de que se originará a grandiosa Roma, conforme vimos acima, na Proposição da Eneida.
Nos dois casos, na Eneida e em Os Lusíadas, o herói está devidamente caracterizado, pela sua missão e pelas dificuldades sobre-humanas enfrentadas. Eis o que pode identificar o herói: a ele é confiada uma missão divina, cujas dificuldades devem ser enfrentadas e vencidas pela sua força superior, seja com relação à sua ética, seja com relação a seus feitos no campo de batalha, as “obras valerosas” que o “vão da lei da Morte libertando” (estrofe 2, 5-6). É assim que Eneias, depois de enfrentar os dissabores na sua viagem terra marique, por terra e por mar, enfrenta o da guerra, além da perseguição de uma divindade poderosa como Juno.
Já Vasco da Gama enfrentará os “perigos e guerras esforçados/Mais do que prometia a força humana” (estrofe 1, versos 6-7), não lhe faltando a oposição cerrada do deus Baco, que aparece no poema como símbolo do politeísmo e do paganismo, abrangendo, a um só tempo, a propaganda cristã contra o islamismo e contra as diversas religiões hinduístas.
Que eu canto um peito ilustre Lusitano,
A quem Neptuno e Marte obedeceram.
Se Virgílio tem por propósito mostrar Eneias como um herói sofrendo provações, num processo de fundação de uma cidade, de que outra, altiva, surgiria, no caso Roma, Camões vai mais adiante e faz desmedida exaltação de Vasco da Gama,
A excelência de Vasco da Gama () não para por aí. Se “o peito ilustre Lusitano” revela-se maior do que os seus congêneres da ficção, quando confrontado com os personagens históricos da Grécia e de Roma, Alexandre Magno () e o imperador Trajano (), ele os deixa para trás, no que diz respeito à expansão portuguesa que foi além do qualquer outra, com relação aos gregos e aos romanos, alcançando o Oriente mais longínquo, passando além da Taprobana, o atual Sri Lanka, e chegando ao Japão, China e Oceania.
Não é à toa que Camões termina a sua Proposição da seguinte forma (estrofe 3, versos 7-8):
Cesse tudo o que a Musa antiga canta,
Que outro valor mais alto se alevanta.
Trata-se da síntese da grandeza lusitana, excelendo o mundo greco-romano, de que Portugal e o Ocidente são tributários. O que a Musa antiga canta reúne o mito, a religião e a história, ressaltando que se a Musa do poema épico é Calíope, a quem Camões invoca no início do Canto III – Agora Tu, Calíope me ensina/O que contou ao Rei o Ilustre Gama (estrofe 3, versos 1-2) –, a Musa da História era Clio, a quem o grego Heródoto (485-425 a. C.), o mais famoso historiador grego antigo do mundo ocidental, dedicou o primeiro dos seus nove livros. O Peito Ilustre Lusitano não subjuga apenas Netuno e Marte, mas também Calíope e Clio. Ou seja, se nos feitos gloriosos, o Ilustre Gama é maior que o mar, que a guerra e que Heródoto, nos feitos poéticos, Camões é maior que Homero e Virgílio. Já suas Musas, as ninfas do Tejo, suplantam as deusas Olímpicas. Alçam-se o herói, a nação e, evidentemente, o poeta.