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Meu pai se chamava Simplício Fernandes da Silva. Há pessoas cujos nomes se parecem com o que elas são. Não era o caso do meu pai, que...

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Meu pai se chamava Simplício Fernandes da Silva. Há pessoas cujos nomes se parecem com o que elas são. Não era o caso do meu pai, que estava longe de ser simples. Chamar ele de Simplício não deixava de ser irônico. O velho era implicante, ranzinza, e se zangava por motivos tolos.

O melhor das viagens são as caminhadas. Percorrer avenidas, ruas ou becos pelo simples pra...

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O melhor das viagens são as caminhadas. Percorrer avenidas, ruas ou becos pelo simples prazer de olhar o cenário. Perder-se no tempo e no espaço sem outro propósito senão o de sentir a atmosfera do lugar – enquanto o grosso da população marcha com aquela pressa característica de quem tem coisas a fazer.

Viajar dá trabalho, e o turista é sobretudo um obreiro do seu lazer. Tem que providenciar os documentos...

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Viajar dá trabalho, e o turista é sobretudo um obreiro do seu lazer. Tem que providenciar os documentos; juntar os remédios que não pode deixar de tomar, se for o caso (depois de certa idade, sempre é o caso); fazer e conduzir as malas não só aos aeroportos como também aos locais onde vai se hospedar. Tudo isso exige um preparo físico que só é compensado pelo alívio espiritual que a quebra da rotina e a ida a outros lugares devem lhe trazer.

O Norte da França é famoso por seus castelos e vinhedos, de modo que percorrê-lo pode ser também uma embriagadora forma de voltar ao...

O Norte da França é famoso por seus castelos e vinhedos, de modo que percorrê-lo pode ser também uma embriagadora forma de voltar ao passado. Os castelos são um registro da suntuosidade imperante nas cortes, que concorriam entre si em luxo e grandeza.

Na viagem que fizemos recentemente, começamos nosso roteiro pelo castelo de Chenonceau, construído por Thomas Bohier e sua esposa, Katherine Briçonnet. O lema dos dois, inscrito na porta em madeira de carvalho, era: “Se eu conseguir construir Chenonceau, meu nome será lembrado.” Estavam conscientes de que a obra que iniciavam teria o reconhecimento da posteridade.

Ah, esse ar de turista. Um jeito de quem não está nem aí… E não está mesmo. O mundo que ele perc...

Ah, esse ar de turista. Um jeito de quem não está nem aí… E não está mesmo. O mundo que ele percorre é outro, bem distinto do que a história soterrou.

Torres, arcadas, câmaras suntuosas onde reis dormiam com suas esposas – e, em não menos luxuosos anexos, com as belas concubinas – já não são os mesmos de outros tempos. Falta o que lhes dê vida.

Há dias a mídia veiculou a notícia de um casal londrino que ganhou um prêmio bilionário na loteria. Tan...

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Há dias a mídia veiculou a notícia de um casal londrino que ganhou um prêmio bilionário na loteria. Tanto quanto haver ganhado o prêmio, o que chamou a atenção foi a reação dos dois. O marido, após receber a notícia informando a premiação, esperou que a mulher acordasse para lhe comunicar o fato. Já a mulher, depois de informada, tomou calmamente seu café e foi para a repartição. Exemplo melhor da fleuma britânica não poderia existir.

Os dois amigos se reencontram, depois de anos, no calçadão da pra...

Os dois amigos se reencontram, depois de anos, no calçadão da praia. Quando Leocádio vai abraçar Tancredo, este se afasta com uma expressão de temor.

⏤ Por favor, não me toque. Tenho hafefobia, medo de ser tocado. Espero que compreenda.

Mallarmé escreveu que uma das funções da poesia é compensar as deficiências da língua. A língua é deficiente e imprecisa, entre out...

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Mallarmé escreveu que uma das funções da poesia é compensar as deficiências da língua. A língua é deficiente e imprecisa, entre outras razões, pelo descompasso que há nela entre forma e conteúdo. As palavras não são o que dizem nem dizem o que são. Uma das funções da poesia é tentar corrigir esse desacordo, propiciando aos componentes do léxico a identidade possível entre som e sentido. Na poesia, a palavra não diz; é.

Uns sofrem do demônio da dúvida e vivem na gangorra do sim ou não. Outros são compulsivos e remordem-se de culpa sem motivo aparente...

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Uns sofrem do demônio da dúvida e vivem na gangorra do sim ou não. Outros são compulsivos e remordem-se de culpa sem motivo aparente. Há também os ansiosos, que padecem de uma inexplicável “pressa por dentro” (expressão de Clarice Lispector).

Eu tenho um pouco de tudo isso, mas o que me incomoda mesmo é a distração. Não sou dos que chegam a um lugar sem saber o que foram fazer ali; nem dos que nunca lembram em qual estacionamento do shopping deixaram o carro. Mas já vivi situações que me causaram grande constrangimento. A maioria no âmbito doméstico, para desespero da minha mulher.

Se vivo fosse, Augusto dos Anjos comemoraria em 20 de abril o seu 139º aniversário. A ocasião é oportuna para revisitar a obra com...

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Se vivo fosse, Augusto dos Anjos comemoraria em 20 de abril o seu 139º aniversário. A ocasião é oportuna para revisitar a obra com a qual ele conquistou um lugar definitivo na nossa literatura.

Quando surgiu, em 1912, o Eu foi recebido como um livro estranho e singular. Não é verdade que tenha sido rechaçado, ou mesmo ignorado, por críticos e leitores comuns. Pelo contrário, mesmo quem se surpreendia com a sonoridade áspera e o vocabulário por vezes impenetrável do poeta, percebeu naqueles versos as marcas de uma poesia vigorosa e, a seu modo, bela – mas não da beleza fluida e cristalina dos parnasianos.

Qual a melhor imagem para a vida? Alguns costumam compará-la a uma viagem, ou melhor, a uma travessia no deserto com início, meio e f...

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Qual a melhor imagem para a vida? Alguns costumam compará-la a uma viagem, ou melhor, a uma travessia no deserto com início, meio e fim. Essa imagem é boa, mas muito resumida... Outros, em vez do deserto, preferem o oceano; dizem que estamos todos “no mesmo barco”.

O barco pode ser comum, mas se esquecem de dizer que nem todos viajam da mesma forma. Enquanto uns se banqueteiam no convés, outros suam nos porões... É verdade que o barco corre o risco de naufragar e, se isso ocorrer, todos morrerão – mas, enquanto não ocorre, uns gozam e outros trabalham. E trabalham justamente para os outros gozarem, por isso às vezes desejam secretamente que o barco afunde.

A função da poesia é revelar os objetos sob um novo olhar – isso a gente aprende logo nas primeiras aula...

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A função da poesia é revelar os objetos sob um novo olhar – isso a gente aprende logo nas primeiras aulas de Teoria da Literatura. O signo poético, por sua opacidade, não estabelece um vínculo direto entre o significante e o significado. Constitui uma palavra-coisa, não uma palavra-sinal – para usar a terminologia de Sartre em “O que é a literatura?”.

Nas últimas semanas o mundo tem tido notícia de um produto revolucionário da Inteligência Artificial – o ChatGPT. Ele seria capaz de el...

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Nas últimas semanas o mundo tem tido notícia de um produto revolucionário da Inteligência Artificial – o ChatGPT. Ele seria capaz de elaborar cálculos matemáticos ultracomplexos e produzir textos dos mais variados tipos. Por essas características, entre muitas outras, vem empolgando cientistas, artistas e intelectuais. Ao mesmo tempo lança uma sombra de medo nos que temem a concorrência com a IA e traz à baila o velho temor de o homem ser superado por ela.

Antes de viajar, ela chamou o marido e recomendou: — Não se esqueça de aguar as minhas orquídeas. Basta uma vez por semana. Uma, nã...

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Antes de viajar, ela chamou o marido e recomendou:

— Não se esqueça de aguar as minhas orquídeas. Basta uma vez por semana. Uma, não mais. Se você esquecer, elas morrem.

Ele ouviu com ar compenetrado e prometeu que aguaria as orquídeas. Uma vez por semana. Feita a promessa, ajudou-a a botar as malas no carro e a levou para o aeroporto. Na despedida, beijaram-se. Ele lhe desejou boa sorte no estágio e fez a carinhosa recomendação:

Aí pela terceira cerveja, um dos amigos repisou a ideia – por sinal bem velha – de que a vida é um filme. Cada um...

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Aí pela terceira cerveja, um dos amigos repisou a ideia – por sinal bem velha – de que a vida é um filme. Cada um bem ou mal protagoniza o seu, e não adianta chorar diante do resultado. Quando se chega aos cinquenta, sessenta anos, o filme está feito, acabou o orçamento. Não há mais tempo senão para exibi-lo e, independentemente do que apareça na tela do tempo, contemplá-lo. Mas a verdade é que poucos têm interesse pelo filme da própria vida. Só aquele ar de déjà vu... A vida, um filme! E cada qual, animado pela quarta cerveja, tratou de repassar o seu. Fragoso pediu a palavra e foi sincero:

Mestre Rubem Braga tratou longa e exaustivamente do efeito do verão sobre as mulheres, mas quem seria capaz de esgotar o assunto? Renov...

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Mestre Rubem Braga tratou longa e exaustivamente do efeito do verão sobre as mulheres, mas quem seria capaz de esgotar o assunto? Renova-se o verão e renovam-se as mulheres, sendo preciso que haja cronistas de fôlego novo para dar conta dessas explosões cíclicas. O que o Braga escreveu é definitivo, como definitivo era o que Camões registrava das navegações portuguesas – mas a época dos descobrimentos passou. Vivemos agora outro verão e nos cumpre assinalar, por dever de um ofício docemente autoimposto, o quadro que se nos depara. Com menos talento,

Outrora as pessoas morriam mais cedo e nem assim deixavam de fazer as obras que poderiam notabilizá-las. Parece que a consciência da b...

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Outrora as pessoas morriam mais cedo e nem assim deixavam de fazer as obras que poderiam notabilizá-las. Parece que a consciência da brevidade da vida levava-as a intensificar seu trabalho. Era como se, intuitivamente, soubessem que não tinham tempo a perder. Ameaçadas por um número maior de doenças sem cura, não podiam se dar ao luxo de adiar projetos e sonhos. Nossos poetas românticos, por exemplo, deixavam este mundo na flor da idade, ceifados pela sífilis ou pela tuberculose, mas as suas obras pareciam consumadas. Eram o melhor que eles poderiam fazer.

Festa do pecado” – foi com esse tipo de rótulo que o Carnaval, desde cedo, apresentou-se à minha imaginação. Falava-se nele como “fe...

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Festa do pecado” – foi com esse tipo de rótulo que o Carnaval, desde cedo, apresentou-se à minha imaginação. Falava-se nele como “festa da carne”, alegria dos baixos instintos, frenesi do demo. Por isso eu sempre o recebi com uma ponta de remorso. Brincar o carnaval era transgredir não sei que piedosas regras, era comprometer-se com o inferno. O corpo gozava, mas esse prazer de poucos e efêmeros dias acabava tendo um preço.

O bom do Carnaval é que a gente não precisa se esforçar para vivê-lo. Ninguém tem que fazer um cronograma para desfrutar s...

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O bom do Carnaval é que a gente não precisa se esforçar para vivê-lo. Ninguém tem que fazer um cronograma para desfrutar seus deliciosos efeitos. Ele é por princípio a ausência de planos e esquemas; existe para nos tirar das estratégias racionalizantes com que atuamos no mundo.

Fala-se que, na velhice, a vida perde a graça. Discordo. Quem perde a graça é o velho, não a vida, que sempre está aberta a quem quer ...

Fala-se que, na velhice, a vida perde a graça. Discordo. Quem perde a graça é o velho, não a vida, que sempre está aberta a quem quer desfrutá-la. Uma das formas de evitar que a graça se perca, mesmo sendo avançada a idade, é cultivar o humor.