Se vivo fosse, Augusto dos Anjos comemoraria em 20 de abril o seu 139º aniversário. A ocasião é oportuna para revisitar a obra com a qual ele conquistou um lugar definitivo na nossa literatura.
Quando surgiu, em 1912, o Eu foi recebido como um livro estranho e singular. Não é verdade que tenha sido rechaçado, ou mesmo ignorado, por críticos e leitores comuns. Pelo contrário, mesmo quem se surpreendia com a sonoridade áspera e o vocabulário por vezes impenetrável do poeta, percebeu naqueles versos as marcas de uma poesia vigorosa e, a seu modo, bela – mas não da beleza fluida e cristalina dos parnasianos.
Quando surgiu, em 1912, o Eu foi recebido como um livro estranho e singular. Não é verdade que tenha sido rechaçado, ou mesmo ignorado, por críticos e leitores comuns. Pelo contrário, mesmo quem se surpreendia com a sonoridade áspera e o vocabulário por vezes impenetrável do poeta, percebeu naqueles versos as marcas de uma poesia vigorosa e, a seu modo, bela – mas não da beleza fluida e cristalina dos parnasianos.
(...) Como Beleforonte com a Quimera
Mato o ideal; cresto o sonho, achato a esfera
E acho odor de cadáver na fragrância!
(“Aberração”)
Era difícil situar Augusto em alguma corrente estética. O Eu surgiu num momento em que Parnasianismo e Simbolismo conviviam, mas a rigor não se filiava a nenhum desses estilos. Os historiadores terminaram incluindo-o no Pré-Modernismo, já que ele constitui uma ponte entre os simbolistas e os modernos. Conserva dos primeiros a musicalidade e o tom soturno, que lembra Cruz e Sousa. E tem dos segundos o vocabulário prosaico, por vezes apoético, em que palavras de uso cotidiano (vinagre, tesoura, sorvete) se alternam com vocábulos científicos. Sua modernidade está mais nisso do que no uso de versos que não rimam ou na metrificação livre. Como em termos de métrica e de rima Augusto era convencional, foi praticamente ignorado pelos modernistas de 22.
@issocompensa
A grande acolhida estimulou múltiplas abordagens da obra, muitas delas mais interessadas no autor do que em seus versos. Ao povo ainda hoje fascina o indivíduo raquítico e doente, que teria deixado a Paraíba – depois de uma briga com João Machado – para morrer tuberculoso em Leopoldina (MG). A verdade é que ele nem morreu de tuberculose, mas de pneumonia, nem foi injustiçado pelo governador. Este, ao negar ao poeta licença remunerada quando ele foi tentar a vida no Rio, apenas aplicava a lei. Como Augusto não era professor efetivo no Liceu Paraibano, não podia sair com ônus.
Túmulo de Augusto em Leopoldina (MG) @leopoldina.mg.gov.br
Que dizer então de uma poesia como a de Augusto, na qual o eu é um disfarce para o nós? Apesar do tom confessional, seus versos falam de uma saudade que ultrapassa a memória subjetiva. É uma “saudade da monera”, abstração filosófica que deve ser entendida como referência e origem não do indivíduo, mas da espécie. A monera é a “mãe antiga” – a matriz ilusória de uma raça que, tendo perdido o Paraíso, ganhou a culpa. O poeta refere uma culpa cósmica, expressa em imagens de peso, carga e dilaceramento físico. Essas imagens, comuns à estética da melancolia, indicam um desejo de punição:
Ah! Com certeza, Deus me castigava!
Por toda a parte, como um réu confesso,
Havia um juiz que lia o meu processo
E uma forca especial que me esperava!
(“As cismas do Destino”)
Apesar disso, Eu e outras poesias não é um livro difícil. O que lhe dificulta a leitura é o vocabulário de base científica e filosófica, absorvido pelo poeta em suas leituras de Spencer, Leibniz, Haeckel e outros.
É preciso “traduzir” essas palavras e, sobretudo, compreender que no universo poético de Augusto elas perdem a referência original. Deixam de ser conceitos e se transformam em imagens. Transfiguradas poeticamente, valem como metáforas que buscam traduzir as obsessões do poeta com a origem e o destino humano. Pela acústica original, concorrem para o expressionismo de uma poesia áspera, dissonante, que segundo Manuel Bandeira se propaga por estampidos.
@laci.jane.18
Augusto fala em morte, vermes, esqueleto, mas também tem olhos para o espetáculo da vida. Em muitos de seus poemas longos, às elucubrações tristonhas sucede a descrição do nascer do sol, que injeta seiva em plantas e bichos. O poeta se entusiasma com os fenômenos vitais e vê o homem, a despeito da mágoa (mácula) que o condena, como um produto da energia recriadora da Natureza.
O Eu traduz essa visão com um vigor expressivo pouquíssimas vezes encontrado na literatura brasileira, consagrando o seu autor como uma das mais originais vozes da nossa poesia em todos os tempos. E disso ele tinha ciência – tanto que afirmou, após mirar-se no seu espelhinho pouco antes de morrer: “Essa chama jamais se apagará”. De fato. Sua obra continuará pelos séculos jogando luz em alguns dos tenebrosos mistérios que habitam a nossa alma.