Há dias em que acordo com uma pergunta ecoando dentro de mim: quem sou eu quando ninguém me vê? A pergunta soa filosófica, quase ped...

O maior desafio

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Há dias em que acordo com uma pergunta ecoando dentro de mim: quem sou eu quando ninguém me vê? A pergunta soa filosófica, quase pedante, mas desce rápido para o chão do cotidiano quando me deparo com o espelho do elevador. Ali, antes mesmo de eu me arrumar, já estou me ajustando: endireito os ombros, suavizo a expressão, preparo um rosto que não é exatamente mentira,
Musée des Beaux-Arts de Rouen, França
mas também não é inteiramente verdade. É apenas, aceitável.

Vivemos a vida inteira tentando sobreviver no olhar do outro. Não no sentido trágico da palavra “sobreviver”, como quem escapa de um naufrágio, mas naquele sentido sutil, quase imperceptível, de quem precisa manter-se flutuando num mar de expectativas. Desde criança aprendemos isso: um sorriso rende colo, uma nota baixa rende silêncio pesado, uma roupa diferente rende olhares que doem sem deixar hematoma.

O escritório, o café, a festa, até mesmo a fila do supermercado, todos são palcos invisíveis onde representamos versões de nós mesmos. Às vezes somos a pessoa confiante, outras a prestativa, a engraçada, a séria, a forte. E cada olhar que nos atinge é como um pequeno farol: aprovando, reprovando, ignorando. E nós, como barcos frágeis, ajustamos a rota. Mudamos uma palavra, suprimimos um gesto, aumentamos o tom da voz. Tudo para não naufragar no julgamento alheio.

Musée du Petit Palais, Genebra
Mas o que acontece quando fechamos a porta de casa? Quando desligamos as câmeras, apagamos as luzes e ficamos só com o reflexo na janela escura? Ali, às vezes, vem um cansaço que não tem nome. É o peso das máscaras que usamos o dia inteiro. E a pergunta volta: quem sou eu quando ninguém me vê? Será que sequer existe um “eu” que não tenha sido costurado por expectativas?

J. Paul Getty Museum, Los Angeles
Há quem diga que a liberdade está em desprezar o olhar alheio. Mas não é simples. Somos animais sociais, feitos de linguagem e espelhos. Precisamos do outro para existir, mas não para nos definir. Talvez a verdadeira sobrevivência não seja agradar, nem chocar, nem se esconder. Talvez seja apenas permitir-se ser inconsistente. Ser forte e frágil, alegre e triste, confiante e inseguro, tudo ao mesmo tempo, sem pedir licença ao olhar de ninguém.

No fim das contas, sobreviver no olhar do outro é inevitável. Mas talvez a arte da vida esteja em equilibrar-se entre o que os outros veem e o que sabemos que somos quando a sala está vazia. Entre o espelho do elevador e o reflexo na janela escura. Entre a persona e a alma. E, quem sabe, um dia, encontrar uma paz que não precise de plateia para existir.

Porque, no fim, o único olhar que realmente carregamos para sempre é o nosso próprio. E sobreviver a ele, esse sim é o maior desafio.

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