Como você se identifica? Qual é a característica que prevalece sobre seu ser? Legal? Chato? Extrovertido? Introvertido? Estamos o tempo...

Autorrotulação

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Como você se identifica? Qual é a característica que prevalece sobre seu ser? Legal? Chato? Extrovertido? Introvertido? Estamos o tempo todo nos avaliando, o que não quer dizer que estamos refletindo efetivamente sobre a nossa personalidade, sobre quem estamos sendo ou gostaríamos de ser. Afinal, não é fácil mexer nesse vespeiro da identidade, sob o risco de ficarmos mais (des)integrados diante da balbúrdia da contemporaneidade.

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Curated Lifestyle
Mas parece que está em moda valer-se de (auto)diagnósticos para justificar nosso modo de ser e estar no mundo. “Eu sou assim porque tenho TDAH”, “porque sou autista”, “borderline”, “bipolar”... A lista é imensa, e não estou, com isso, dizendo que não possam explicar determinados comportamentos. Todavia, é muito redutora a justificativa de um ser humano ser como é por uma idiossincrasia. O ser humano é muito mais do que um laudo. Então, vale perguntar: quanto é de mim e quanto é da “patologia”? O que é “normal”? O que é patológico?

Se, por um lado, essas classificações podem ser libertadoras, porque dão nome a uma experiência antes inominável, por outro, podem ser aprisionadoras. Quando dizemos “sou ansioso” ou “sou depressivo”, às vezes confundimos estado com identidade. Ninguém é apenas uma condição psíquica. Somos atravessados por múltiplas histórias, escolhas, contextos e relações.

Há também o risco de naturalizar comportamentos prejudiciais: “eu sou explosivo porque tenho isso ou aquilo”, “não consigo me concentrar porque sou assim mesmo” — ou frases autodepreciativas, como “eu sou burro” — ou cristalizadoras, como a síndrome de Gabriela: “Eu nasci assim, eu cresci assim, vou ser sempre assim”. Justificativas como essas
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Andrej Lisakov
podem até aliviar a culpa momentânea, mas nos impedem de cultivar responsabilidade sobre nossos atos. A forma como respondemos aos nossos atos e condições revela muito mais do que a ciência atual pode mensurar.

Além disso, viver em sociedade é aprender a negociar nossas singularidades. A identidade não é uma substância fixa, mas uma construção em movimento, que se reinventa a cada encontro. Muitas vezes, aquilo que achamos ser uma característica imutável é, na verdade, uma adaptação a situações. O sujeito calado pode ser tímido em um contexto, mas se mostrar expansivo em outro. O que hoje chamamos de “traço de personalidade” pode ser apenas uma reação ao ambiente, uma forma de sobreviver a um mundo cada vez mais hostil, pouco acolhedor.

Refletir sobre si mesmo, portanto, exige coragem. É mais simples adotar um rótulo pronto do que encarar o desafio de mergulhar no autoconhecimento. Essa descoberta, indubitavelmente, será marcada por dor, por uma sensação desconfortável, pois, à medida que vamos nos aprofundando em nossa história, maior é o sentimento de angústia e vazio que nos invade. Afinal, estamos ganhando profundidade.

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Clara Beatriz
Outra forma de se marcar é justificar o modo de ser por aquilo que se crê que os outros escolheram para nós: “eu sou assim porque meu pai, minha mãe, meu irmão, meu esposo, minha esposa...”. Não. Você é assim porque não teve a estrutura emocional, a maturidade, os recursos psicológicos que o fizessem reescrever a sua história e dar-lhe outro rumo. No entanto, ainda é possível, se deixar de preferir atalhos e encarar o caminho para uma construção mais assertiva.

Devemos aprender a conviver com nossas ambiguidades, nossas ambivalências e entender que nem sempre seremos só sorrisos, abraços, simpatia — tampouco apenas amargura. Em vez de buscar um “quem sou eu” fixo e imutável, podemos aceitar o “estou sendo” e enxergar a possibilidade de mudar de acordo com o tempo, o espaço
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Lia Bekyan
e as relações. Essa postura não elimina a necessidade de cuidado, de terapia, de diagnóstico quando necessário, mas impede que nos transformemos em caricaturas de nós mesmos.

Afinal, ninguém cabe inteiro em uma palavra. Nenhum laudo, nenhuma categoria, nenhum adjetivo dá conta da nossa complexidade. Somos narrativas em aberto, um borrão sempre a rascunhar. Ser gentil, mas não ingênuo; dar-se ao benefício da dúvida; parar de carimbar-se como fazem com os bois. Podemos ser mais humanos, demasiadamente humanos: verso e reverso de uma página em branco, com mil e uma possibilidades de se contar.

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  1. Texto atualíssimo, Leo. Diagnóstico perfeito. Um rótulo não nos abrange inteiramente, pois somos sempre mais. Parabéns. Francisco Gil Messias.

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  2. Ótimo texto! Considero que toda autoavaliação é suspeita. O egocentrismo impede que nos avaliemos com desprendimento e isenção.

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