Qual é a origem do emprego do pronome pessoal nós como plural majestático (que, na verdade, é semanticamente singular)? O plural de majestade é utilizado por reis, chefes de Estado e autoridades eclesiásticas, como no exemplo seguinte:
“Nós, Dom Fernando, pela graça de Deus, rei de Portugal e do Algarve, fazemos saber...”
CUNHA, Celso. Gramática do português contemporâneo. Belo Horizonte: Bernardo Álvares, 1970. p. 206)
Fernando I de Portugal Carl Falch, c. 1655 ▪ Universidade de Coimbra
Moeda com as efígies dos imperadores Diocleciano (Ocidente) e Maximiano (Oriente) ▪ Fonte: Wikimedia
Brown e Gilman explicitam melhor a teoria acima, informando que as reformas de Diocleciano, no séc. IV, unificaram administrativamente o império romano, embora o poder continuasse dividido entre os dois imperadores, o do Oriente e o do Ocidente. Dessa forma, por força dessa unificação administrativa, a pessoa de cada imperador era implicitamente pluralizada, e cada um deles usava o pronome nós em função do poder dividido. O nós passaria a ter um sentido majestático, porque apenas as pessoas reais diziam nós onde as pessoas comuns diziam eu (Cf. BROWN e GILMAN. The pronouns of power and solidarity, In: SEBEOK, Thomas, ed. Style in language. New York: John Wiley, 1960 p. 255).
Divisão do Império Romano, com as capitais em Roma (Ocidental) e Constantinopla (Oriental) ▪ Fonte: Brainly
Xerxes repreende o marSpanish Ach.
Celso Cunha, sem indicar documentação, apresenta uma terceira explicação, segundo a qual o nós de majestade se teria originado do nós de modéstia, isto é, o rei utilizaria nós por falar em nome da nação
Papa Leão I (Leão Magno)
F. Herrera (o Jovem), S.XVII ▪ Museu do Prado
J.J. Nunes, nas suas Digressões lexicológicas (Lisboa: Clássica, 1928. p. 65) atribui o aparecimento do nós majestático talvez à ideia dos últimos imperadores (séc. IV) de que sua autoridade provinha daqueles que lha haviam conferido, numa imitação de um uso já bastante antigo, pois na tragédia Hécuba, de Eurípedes, no verso 22, Ulisses utiliza o pronome nós ao falar de si mesmo. Marilina dos Santos Luz cita parcialmente essa explicação de J.J. Nunes, acrescentando a de Antônio de Vasconcelos, que, em sua Gramática histórica da língua portuguesa, apresenta uma teoria semelhante à de Celso Cunha para explicar o nós majestático (Cf. LUZ, Marilina dos Santos, O.c. p. 26, nota 30, e NUNES, J.J. Digressões lexicológicas, p., 65).
Franz Blatt (Précis de syntaxe latine. Paris: IAC, 1952. p. 136-7 § 182) apresenta várias razões que explicam com maior plausibilidade a origem do uso de nós com significação singular:
a
Psicologicamente, o falante pode dar mais peso às suas palavras, falando em seu nome e no nome de outras pessoas, ou, então, identificar-se com o seu interlocutor, falando em nome de ambos.b
Há casos, também, de o plural poder empregar-se em lugar do singular, como consequência de não haver uma separação nítida, definitiva e absoluta entre o plural
O ImperadorC. Beckwith, 1912 ▪ Smithsonian Museum
c
Costuma-se lembrar que o plural de majestade era estranho ao latim clássico e só aparece no séc. II de nossa era, com Gordiano II (238-244), e teria sua origem nos éditos imperiais promulgados por vários imperadores, simultaneamente. Mais tarde, nós passaria a representar, então uma só pessoa. (V. também SALUM, I. N. A contribuição linguística do Cristianismo na România antiga. --- tese de doutoramento datilografada -- São Paulo: USP, 1954. p. 335, e GREVISSE, M. Le bon usage – cours de grammaire Française et de langage français. 5.ed. rev. et augm. Gembloux: J. Duculot, 1953p. 383-4, § 495.)Que o leitor decida qual dessas explicações aceitar... Meu trabalho aqui foi o de jogar lenha na fogueira, na esperança de mais luz...