Um grande escritor nos dá muitas lições. Não importa quando e onde ele escreveu, pois a atemporalidade e a absoluta ausência de limitações ...

Tolstói atual

milton marques guerra e paz tolstoi ambiente de leitura carlos romero

Um grande escritor nos dá muitas lições. Não importa quando e onde ele escreveu, pois a atemporalidade e a absoluta ausência de limitações geográficas são a característica dos eternos. Os três primeiros trechos Guerra e Paz, de Tosltói, que apresentamos abaixo, são ensinamentos que podem e devem ser seguidos hoje, sem tirar nem pôr, tal a sua atualidade e a sua necessidade. Lições que entram em concordância com o que encontramos em Os Miseráveis, de Victor Hugo, outra obra monumental de outro gigante da literatura:

“Toda reforma violenta merece reprovação, porque pouco irá remediar o mal enquanto as pessoas permanecerem como são, e porque a sabedoria não precisa de violência.” (Tomo II Terceira Parte, Capítulo VII)

“Nenhuma verdade se apresenta da mesma forma para duas pessoas.” (id., ibid.)

“A regeneração e a purificação de si mesmo, é o único objetivo pelo qual nós podemos lutar sempre, independentemente de todas as circunstâncias.” (Tomo II, Terceira Parte, Capítulo VIII)

A ilusão teima em não nos abandonar, seduzindo-nos com os seus ornamentos e aparatos
Sem nos darmos conta de que essência somos feitos, parecemos aquele tio cônego de Brás Cubas que, incapaz de enxergar a parte substancial da Igreja, via dela apenas o seu exterior. Vindos “antes da sacristia do que do altar” (Capítulo XI – “O Menino é Pai do Homem”), é-nos bastante que tenhamos umas bandeiras, uniformes, gritos de guerra, e a reforma do mundo está feita. A minha reforma, contudo, pode esperar, porque a do mundo é mais urgente. É a melifluidade da ilusão.

O último trecho a ser apresentado é ainda mais importante e mais atual, pois, embora vivamos numa época em que a informação encontra-se disponível aos borbotões, mendigando ser transformada em conhecimento, deixamo-nos enganar estupidamente pelo palavreado fácil e borboleteante, que não exige qualquer ação, mas é rápido na acusação de nosso semelhante.
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A razão disso pode ser explicada na alegoria de uma fábula de Fedro: Júpiter colocou ao redor do nosso pescoço duas sacolas; a que contém os vícios dos outros estão sobre o nosso peito; a que contém os nossos próprios vícios estão às nossas costas. Assim, somos compelidos a ver sempre os vícios alheios e condenar-lhes, por exemplo, o espírito de manada; jamais tomamos conhecimento de que podemos estar errados e que adoramos fazer parte de um rebanho qualquer e que, ao menor chamamento, somos a ele levados pela ilusão de que a grei de que eu faço parte é a grei dos puros e dos ungidos. Todos os demais estão danados per omnia saecula. É a ilusão que teima em não nos abandonar, seduzindo-nos com os seus ornamentos e aparatos, fazendo-nos viver dela e para ela, e nela, apenas nela, encontrarmos a verdade que completa a nossa frustração. Não atinamos para o fato de que o aparato diz apenas o que eu pareço ser; quem diz o que eu sou é o meu proceder.

Convido todos à leitura do último trecho de Tolstói. Sugiro que se troque, como eu costumo fazer, em algumas postagens, o nome de Hélène Vassílievna Bezúkhov pelo do Sobrenatural de Almeida. Fazendo a troca ou não, ainda assim teremos um retrato de nossa sociedade atual:

“Ou porque o necessário para presidir um salão fosse justamente a tolice, ou porque os próprios iludidos tinham um prazer na sua ilusão, a ilusão não era revelada, e a reputação d’une femme charmante et spirituelle [mulher encantadora e espirituosa, em francês, no original] se fixara de modo tão inexorável em Hélène Vassílievna Bezúkhova que ela podia dizer as maiores banalidades e tolices, que todos se maravilhavam com cada uma de suas palavras e descobriam nelas um sentido profundo, do qual a própria Hélène nem desconfiava.” (Tomo II, Terceira Parte, Capítulo IX)

Segue a fábula de Fedro, com tradução nossa, em heptassílabos duplos:

De Vitiis Hominum

Peras imposuit Iuppiter nobis duas:

propriis repletam uitiis post tergum dedit,

alienis ante pectus suspendit gravem.
...


Hac re uidere nostra mala non possumus;

alii simul delinquunt, censores sumus.


Dos Vícios dos Homens

Jove, um dia, sobre nós, colocou duas sacolas:

Com os nossos próprios vícios, uma cheia a nossas costas;

outra com vícios alheios, colocou em nosso peito.

A razão aí se encontra de não vermos nossos males;

mas se o outro é que erra, em censores nos tornamos.


Milton Marques Júnior é doutor em letras, professor, escritor e membro da APL

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