Nossa cegueira a respeito de uma existência de milhões de anos é tudo que precisamos para atribuir a uma grande parte do que hoje passa dia...

Ligeira cosmogonia do olhar

ambiente de leitura carlos romero alberto lacet fenomenologia da vida visao cosmica historia do universo fenomeno biologico

Nossa cegueira a respeito de uma existência de milhões de anos é tudo que precisamos para atribuir a uma grande parte do que hoje passa diante dos nossos olhos (enquanto passamos nós diante dela), o privilégio vertical do milagroso, do divino e/ou numinoso.

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Tome-se para exemplo o olhar qualquer de um vivente que, pode, em um curtíssimo instante refletir aflição, ou medo, ou distância, ou fúria, etc., e que, numa visão de tempo, apercebe-se como um fenômeno que foi posto na esteira dos muitos que lhe antecederam, e adiante de todos nascidos a partir dele.

Para melhor apuro do fato, nos bastará ter em mente o princípio geral da interdependência entre tudo que existe na terra e em seu entorno, onde cada coisa resiste apenas enquanto se transforma. Qualquer coisa objetivamente considerada (segundo essa cosmovisão en passant - na preciosa síntese do velho Lavoisier -, e paradoxalmente eterna) não passará de um singelo bólido transeunte da História, vindo de uns tempos incrustado na aventura cósmica, e, aos olhos do restante universo, portando crachá com distintivo nominal.

Houve de certeza aquela vez primeira de um certo módulo biológico se mexendo dentro do primitivo casulo que, naquele momento, encarnara-se numa das formas terrenas do Buraco Negro.

Faltava-lhe, no entanto, um mecanismo de alcance e aferição da realidade com o qual pudesse ao menos dimensionar o lugar do evento que, naquela circunstância, e nele, individuava-se através desse processo pelo qual o macrocosmo se projetara no micro.

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Talvez tal evento não passasse de mais uma das tantas simulações de natureza experimental, há muito se repetindo. Apenas um epifenômeno multiplicado por milhões num planeta praticamente despovoado. Um disparo já antes ocorrido, mas cujo eco, no entanto, continuasse a provocar novas largadas para a inevitável corrida em direção à tomada de consciência que o jovem (?) universo vinha, de forma insistente, requisitando de si.

Quanto ao inescrutável lugar da ocorrência, podemos por enquanto lhe emprestar um contorno semântico que o aproxime, numa analogia, daquele extinto projeto habitacional brasileiro conhecido como Minha Casa, Minha Vida.

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É de se supor que, alguns milhões de anos depois, a sensação de dor ou esmagamento a si imputada pelo ambiente, cobraria daquele vivente – já então um provável vertebrado -- intermináveis ajustes na maneira puramente sensitiva de detectar e diferenciar as incontáveis e adversas situações tidas que enfrentar.

As variadas formas de reação corpórea ensejariam uma multidão de experimentos desastrados ao lado de outros mais aproveitáveis, e estes, para que não se perdessem na geleia absconsa do nada (como se referiu um dia o ator Robert de Niro ao anonimato indevassável que acabou mitigando toda e qualquer memória sobre seu pai), e antes, para proveito imediato, de alguma forma precisavam transformar-se em arquivos.

Arquivos cujos módulos de experimento teriam ido então se acumulando em unidades orgânicas facilmente entendidas como pequeninos silos ou caminhos formatados por proteínas que, para efeito de adequação capacitiva, ajustar-se-iam mais e mais nessa multimilenária e pacienciosa escolha que o tempo opera através de um inapelável jogo de vida e morte entre espécies da flora e fauna.

Num anglicanismo atual, esses dutos acabariam resultando em Slots de Memória.

Uma cópia de todos esses registros, quem sabe a primeira e orgânica forma sinóptica e críptica de conteúdos, provavelmente a primeira forma de escrita de toda História Universal, seria depois introjetada ao longo da espiral genética do pequeno animalzinho, gravando nela a matriz de um disco rígido, espécie de arquivo html em versão orgânica, e que viria a se constituir numa base operante para transmissão da herança biológica primordial daquela espécie, ao lado dos desígnios anatômicos de praxe.

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Tal inserção de caracteres acabaria se constituindo num conjunto de partituras supostamente capazes de reger a multidão de comportamentos que iam sendo assentados na experiência diária – num toma lá, da cá com a Cultura -, e cujas situações limítrofes, vividas e compartilhadas por um tanto de indivíduos ou pelo todo social, provocaria nestes impacto, ou susto, encontrando aí, no Mito, sua forma ao mesmo tempo temporária e duradoura de armazenamento.

Essa espécie de lago simbólico e congelado do psiquismo – numa representação daquele represamento de energia ali capturada e concentrada – havia de ter como forma de libertação o seu escoamento e liberação energética pela via produtiva de novos insights. Numa visão simples, aquele paradigma mitológico viria a funcionar como uma espécie de bateria carregada de energia criativa, pronta a se plugar no sonho, para o enfrentamento dos tantos desafios da vida real.

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Todo um arsenal que aos poucos se foi concentrando na região superior e fronteiriça do corpo, e que logo se transformaria num órgão vital para a vida animal, o cérebro, e este que se tornava assim processador e decodificador de circunstâncias cuja recorrência aos poucos passara a exigir determinadas respostas prontas, disparadas a partir de um mecanismo de defesa a princípio baseado em esquema pavloviano, e enquanto esses tipos de reação e suas assertivas se iam padronizando, findavam naquele arquivo maior, espécie de disco rígido genético - para efeito seletivo e multiplicativo da raça.

Considerando que, num indivíduo, a dor chegue de fora para dentro, e o enfrentamento dessa dor responda de dentro para fora, a Geografia do corpo escolheria alguma parte extrema de si para alojar seu incipiente sistema de comunicação com a realidade, e como a principal característica de seres vivos é não ficar parados, o sistema avançou e se projetou para fora do corpo, criando assim aquelas primeiras antenas sensitivas.

O avanço material, ou aquele das formas de alimentação das espécies, ampliou nestas a capacidade de se auto prover dos insumos imprescindíveis para uma sempre urgente especialização e aperfeiçoamento dos sentidos – intensamente exigidos nas lutas por sobrevivência e ocupação dos ambientes. Essas ramificações de dutos e receptores de sinais vitais foi se bifurcando e, aos poucos, o que era antena foi adquirindo forma de nariz, orelha, e... olho.

O inicial montinho de células nervosas havia forjado uma janela com a qual se protegesse mais eficazmente dos malefícios da realidade, e assim, olhos brotaram de encontro à luz externa, como um puxadinho dos miolos.

Outros milhões de anos depois, esse instrumental fantástico havia se desenvolvido por si, e era dono de um verdadeiro arsenal de cores para expressar e graduar momentos de paz ou de aflição, de fuga ou de reação, ativando assim um código preexistente e capaz de desencadear o tipo mais adequado de postura reativa para cada momento.

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Apesar dos avanços de uma equipagem naturalmente desenvolvida, os seres vivos continuariam ainda a inaugurar seus primeiros movimentos, sempre dentro de uma daquelas reproduções análogas ao buraco escuro primordial, possivelmente como um desígnio de pertinência da informação, quando talvez fosse essa recorrência a única forma de salvaguardar a origem remota; prestasse-se sempre a cumprir a velha máxima, intuitivamente humana e profética, de que informação alguma, por mais atemporal que venha a ser, não há de jazer, de jeito nenhum, perdida para sempre.

Com o surgimento das religiões brotaram finalmente os deuses, e a estes se atribuiu o instantâneo milagre da existência, e, consequentemente, dos olhos dos animais. Mas – cá pra nós –, Deus está vendo.

A arte, em outro exemplo de tipo agora mais diverso, não é nem nunca foi uma competição do tipo pau de sebo, como a que se dá entre as espécies, quando todos convergem e tentam culminar num ápice de sentido único, através do qual se busca sobrepujar os demais. Apesar de todo verdadeiro artista ter seus momentos inexcedíveis, o mito da genialidade que sempre paira sobre um processo reconhecidamente bem sucedido nesta área, vem, no mais das vezes, servir para enevoar o raciocínio sobre esses momentos de máxima e decidida concepção criativa.

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Também não é a Arte essa escada vertical que povoa a imaginação de tantos, quando seguramente deveria ser entendida como um sistema de coordenadas dotado de sua indispensável vertente horizontal, não dogmática, no mais da vezes relutante, gestada porém num incondicional espaço de liberdade conceptiva, e pleno de autocrítica, sendo através desse conjunto de possibilidades que o evoluído espécime, agora corretamente posicionado, poderá atingir seu momento necessariamente criativo. O que apenas lhe será propiciado no deparar-se ele com os obstáculos próprios da parte que lhe coube naquele perene e verdadeiramente democrático buraco negro.

Ali, o vivente, tanto quanto o objeto que aqui lhe serviu de paradigma, corre o risco de ser dragado para sempre. Lembremo-nos do corpo celeste atraído por estrela supernova que, depois da explosão, adensa-se ao ponto de sugar tudo que estiver num raio de algumas dezenas de anos-luz. A fenomenologia da vida, por ser cósmica, é também estelar, e dá-se no lugar estratégico do salto. No lugar sagrado da evolução, onde, diz a teoria, o mundo, tal qual o entendemos iniciou-se, e sempre, pelo mesmo processo, se refaz.


Alberto Lacet é artista plástico e escritor

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