Catulo é múltiplo, diverso. O mesmo poeta capaz de se mostrar compungido ao prantear um irmão morto e enterrado longe da família ( Carmen ...

A zombaria na pena do poeta

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Catulo é múltiplo, diverso. O mesmo poeta capaz de se mostrar compungido ao prantear um irmão morto e enterrado longe da família (Carmen CI – Ad infera), mostra-se bem-humorado ao convidar um amigo para jantar em sua casa, desde que o amigo leve a comida, a bebida e as moças, pois nada há em sua bolsa a não ser teias de aranha (Carmen XIII – Ad Fabullum).

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Os sátiros e as ninfas P. de Matteis
Ele pode revelar-se, ainda, irônico, mordaz e ferino, quando se trata de criticar o pernosticismo de um enfatuado, acentuando-lhe, de modo impiedoso, algum vício. Sem falar no Catulo pornográfico, de cujos textos eu vos pouparei.

Este Catulo, de que falamos recentemente, chorando a morte prematura do irmão, é o Catulo elegíaco. O poeta crítico e, muitas vezes, ácido e cheio de farpas, é o epigramático, que sabe manejar magistralmente a forma concisa do epigrama, utilizando mais habitualmente o dístico elegíaco.

Vejamos como esse veronês impulsivo se refere a um pedante, de nome Árrio, que imagina falar de modo elegante e refinado, colocando aspiração onde não havia. Apresentaremos, primeiro, o texto original, com sua métrica latina, e, em seguida, uma tradução nossa em versos heptassílabos duplos.

Epigramma LXXXIV – Ad Arrium
Chōmmŏdă dīcēbāt, sī quāndō cōmmŏdă uēllĕt dīcĕrĕ, ĕt īnsĭdĭās Ārrĭŭs hīnsĭdĭās, ēt tūm mīrĭfĭcē spērābāt sē ēssĕ lŏcūtŭm, cūm quāntūm pŏtĕrāt dīxĕrăt hīnsĭdĭās. Crēdō, sīc mātēr, sīc lībĕr ăuūncŭlŭs ēiŭs, sīc mātērnŭs ăuūs dīxĕrăt ātquĕ ăuĭă. Hōc mīssō īn SЎrĭām rĕquĭērānt ōmnĭbŭs aūrēs; aūdībānt ĕădĕm hǣc lēnĭtĕr ēt lĕuĭtĕr, nēc sĭbĭ pōstīllā mĕtŭēbānt tālĭă uērbă, cūm sŭbĭtō āffērtūr nūntĭŭs hōrrĭbĭlĭs, Ῑŏnĭōs flūctūs, pōstquăm īllūc Ārrĭŭs īssĕt, iām nōn Ῑŏnĭōs ēssĕ sĕd Hīŏnĭōs.


Tradução em heptassílabos duplos Epigrama LXXXIV – A Árrio
E "comod" Árrius dizia, quando "cômoda" queria, e dizia "insidias", para "insídias" dizer, e achava ter falado de maneira eloquente quando, até onde podia, "insidias" ele dissera. Creio que, assim, a mãe e o liberto tio materno, o avô materno, assim, e também a avó disseram. Enviado para a Síria, que descanso às orelhas! Lá ouviam as mesmas coisas, com doçura e leveza, nem temiam, em seguida, tais palavras a si mesmos, quando, súbito, anunciou-se a notícia tão horrível: As chamadas ondas Jônias, depois que Árrius lá chegara, já não mais assim chamavam, mas "Jonias" se dizia.

De início, o epigrama LXXXIV de Catulo apresenta uma impossibilidade de tradução, com relação aos termos ditos de modo forçadamente aspirado por Árrio. No original latino, em lugar de "cômod" e "insídias", Árrio diz algo como "rrômoda" e "rrinsídias", alegando que seus antepassados se expressavam dessa maneira e ele estaria, então, seguindo o mos maiorum, o costume dos antigos. Catulo brinca com esse tipo de prolação, porque a pronúncia de "Iônias" em "Hiônias" ("rriônias"), transformou o termo no homófono grego χιονέους, "nevosos".

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Retorno da caça Peter Paul Rubens
Desse modo, as "ondas Iônias", referências as águas que banham a costa da Iônia, passaram a ser as "ondas nevosas", algo parecido com a confusão que alguém faz, querendo dizer "vultoso" (avultado, volumoso) e dizendo "vultuoso" (congestionado). O tipo afetado de Árrius pode ter sido o ponto de partida para Petrônio, em data muito posterior, criar o impagável Trimalquião, no Satyricon, sempre querendo demonstrar uma cultura que não tinha.

Como não há aspiração na Língua Portuguesa, fizemos o deslocamento do acento das palavras, em flagrante e consciente erro de prosódia, para tentar alcançar o tom irônico do poeta, na sua zombaria a Árrio, modelo do esnobe metido a bem-falante que abre a boca e nos envia, sem a menor complacência, uma "rúbrica" e um "púdico", em lugar de "rubrica" e "pudico", numa hipertrofia da correção.

A falta de aspiração na língua portuguesa não impede, contudo, que algumas pessoas forcem a palatalização desnecessária, como podemos ver em um certo Jorge Ben (menina, que não "shabe" quem eu "shou"...), Cauby Peixoto ("Concheichão", eu me lembro muito bem, vivia no morro a "shonhar"...), e agora com a cantora Paula Fernandes. É esse tipo de prosódia descabida, para ser diferente, que é motivo de zombaria na pena de Catulo, no Epigrama LXXXIV. Não resistimos à ironia catulana e emulamos o poeta, fazendo um epigrama sobre um vício linguístico muito comum em pessoas de uma determinada região do país:

Emulando o Epigrama LXXXIV de Catulo – Ad Arrium
"Gratuíto" por "gratuito", se achando bem falante, Fortuíto Paulistano, acredita-se importante. E gastando seu vernáculo, "circuíto" prolatando, cada vez que ele pode, os ouvidos massacrando. Orgulhava-se de um passado, bandeirante e loquaz, repetindo as silabadas, cada vez mais contumaz. Enviado à Paraíba, a prosódia costumeira um impacto recebeu, foi motivo de zoeira: Percebeu de imediato o quão peco era o seu fruito, nunca fora Fortuíto, o seu nome era Fortuito.

Exercício e brincadeira à parte, a nossa intenção é mostrar que estamos mais próximos do que pensamos, dos poetas que escreveram há mais de dois mil anos. A criação poética de qualidade, seja lírica ou satírica, é atemporal e universal.


Milton Marques Júnior é doutor em letras, professor, escritor e membro da APL

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