Este é um texto sobre o natal, natal no seu sentido primeiro de nascimento e, sobretudo, de nascimentos, por necessitarmos nascer vária...

A probidade tenebrosa

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Este é um texto sobre o natal, natal no seu sentido primeiro de nascimento e, sobretudo, de nascimentos, por necessitarmos nascer várias vezes e, várias vezes, refazer a nossa rota.

O que é o mito da Caverna? Embora indissociavelmente ligado aos outros dois, o de Giges (359b-360d) e o de Er (614a-621e), o mito da Caverna (514a-519c), no sentido grego do termo, é a narrativa do desvelamento da Verdade,
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Platão, filósofo e matemático do período clássico da Grécia Antiga ▪ Arte: D. Cunego, 1783, (insp. Mengs / Rafael).
e da responsabilidade que temos em levá-la aos outros, mesmo com o risco de não sermos compreendidos; mesmo com o risco de nossa própria vida, conforme adverte Platão, na República.

Sair da caverna não é trabalho fácil, afinal a única via é uma subida íngreme, que demanda grande esforço. Há ainda o impacto diante do encontro com o Sol, cegando quem ousa fazer essa caminhada, até que possa acostumar-se, pouco a pouco, com a luz. Abandonar as aparências, a que nos habituamos, não é fácil; sermos atingidos pelo brilho da Verdade provoca uma cegueira, ainda que momentânea, resistência que fazemos diante das revelações assustadoras. Resistência ao fato de que iremos abrir mão daquilo a que nos entregamos, voluntariamente, de corpo e, sobretudo, alma, movidos pelo hábito. É mais cômodo, mais fácil e mais confortável, permanecer com o que já conhecemos. Quebrar o ciclo em que vivemos é sempre difícil e doloroso. No entanto, é o que deveríamos fazer; deveríamos, ao menos, tentar. Se tivermos alguém para nos guiar, será melhor, por estarmos cegados pelo condicionamento da inércia, que impede a reflexão.

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Se Platão nos dá a lição de que o desvelamento do conhecimento é produto de uma consciência, o que pressupõe a reflexão (o anel de Giges); de uma responsabilidade em transmitir aos demais (Caverna), assumindo a responsabilidade de nossos atos (Er), Victor Hugo nos revela algo semelhante, em outra narrativa, não mais filosófica ou mítica, mas envolvendo seres humanos. Sim, estamos falando de Os Miseráveis. Sim, é uma narrativa literária e, podemos dizer, até certo ponto, alegórica. Trata-se, porém, de uma narrativa mais próxima da realidade presente. Há uma verossimilhança que a literatura exige, e de que a filosofia prescinde.
A filosofia é, por vezes, alegórica; a literatura, quando alegórica, tem diante si a exigência do verossímil, para que o pacto literário se estabeleça. Aristóteles e Platão podem até se encontrar, mas são diferentes.

Em Os Miseráveis, Jean Valjean, personagem que intitula a Quinta parte do romance, de que falaremos daqui por diante, vai em direção às barricadas, da rue de la Chanvrerie, em busca de Marius, por estar incomodado com o amor às escondidas entre o rapaz e Cosette. Digamos que o incômodo se traduza por ciúme e que a procura de Marius seja para tomar satisfação, de modo a afastá-lo da moça.

Uma vez na barricada, tudo muda. Jean Valjean, que não se sentia integrado ao espírito da insurreição, passa a tomar parte do movimento, ainda que com reservas, sempre optando pela vida. Nas três vezes em que ele efetua disparos é para ajudar, não para matar. Javert que havia, igualmente, se integrado ao grupo, como espião, com a intenção de efetuar a prisão dos insurretos, tendo sido descoberto, é aprisionado e espera a hora de sua execução. Ele sabe que vai morrer, mas a morte não o assusta, afinal de contas ele está cumprindo com o seu dever. É parte inexorável do que faz.
Ao ver Jean Valjean entre eles, qualquer resquício de dúvida se dissipa (V, 1, 7, p. 943):

“Enquanto amarravam Javert, um homem na soleira da porta o considerava com uma atenção singular. A sombra desse homem fez Javert girar a cabeça. Ele levantou os olhos e reconheceu Jean Valjean. Ele não estremeceu nem um pouco, baixou altivamente a pálpebra e se limitou a dizer: É muito simples.”

Combeferre, um dos estudantes líderes da insurreição, segue a lógica de Enjolras, para quem “a gloríola é um desperdício”, no seu discurso (V, 1, 4, p. 935-937), uma peça brilhante de oratória, na tentativa de salvar a vida daqueles engajados ao movimento que têm mães, irmãs, esposas, filhas e filhos. É um discurso sobre a necessidade de proteção às crianças e às mulheres, que padecerão grandes sofrimentos, se, na resistência ao poder governamental, morrerem aqueles de quem elas dependem. Para salvar cinco desses heróis, Jean Valjean, com o risco da própria vida, cede o seu uniforme da Guarda Nacional.

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O discurso de Enjolras (V, 1, 5, p. 940-942) complementa o de Combeferre, tratando do progresso advindo da Educação, cujo patamar mais alto é a Ciência, ambas produto da intercessão entre a Liberdade, a Igualdade e a Fraternidade, as quais, por sua vez, confluem para a construção de uma sociedade justa, que garanta “a todas as aptidões o mesmo acesso” (p. 941):

“A Igualdade tem um órgão, a instrução gratuita e obrigatória. O direito ao alfabeto, é por aí que é necessário começar. A escola primária imposta a todos, a escola secundária oferta a todos, esta é a lei. Da escola idêntica surge a sociedade igual. Sim, ensino! Luz, luz! Tudo vem da luz e tudo para ela retorna.”

Depois de ouvi-lo, Jean Valjean, em meio à batalha que se inicia, solicita a Enjolras o direito de matar Javert, seu perseguidor implacável. Retirando-se para um beco, Jean Valjean liberta Javert e atira para cima, que, por não compreender o significado do perdão, fica sem entender o que ele fez.
Afinal, era a grande oportunidade de o antigo forçado escapar, de uma vez por todas, da sua perseguição.

Retornando à barricada, em meio à batalha que ainda se trava, Jean Valjean consegue salvar Marius, desacordado e ferido, empreendendo uma aventura pelos dédalos dos esgotos de Paris, para, ao final de tanto esforço, cair nas mãos de... Javert. Se o inspetor se mostra empenhado em prendê-lo, de nada tendo adiantado Jean Valjean poupar-lhe a vida, este mostra-se firme em salvar Marius, levando-o para a casa do avô, M. Gillenormand. Demonstrando a intenção de não fugir, Jean Valjean deixa claro que, após a consecução de seu propósito, Javert poderá dispor dele para o que quiser.

A atitude de Jean Valjean salvando as duas vidas, quando poderia ter-se libertado do inflexível adversário, causa uma “revolução” em Javert, em cujo espírito “uma catástrofe acabava de acontecer” (V, 4, Livro único com capítulo único, cujo título, “Javert descarrilhado”, dá a medida de seu espanto, em relação a Jean Valjean, p. 1039). O inspetor ainda o acompanha até a casa de Marius, mas desaparece, deixando-o livre (p. 1041):

“Jean Valjean era o peso que ele tinha no espírito. Jean Valjean o desconcertava. Todos os axiomas que tinham sido os pontos de apoio de toda a sua vida desabavam diante desse homem. A generosidade de Jean Valjean com relação a ele o aniquilava. [...] M. Madeleine reaparecia por trás de Jean Valjean e as duas figuras se sobrepunham de maneira a não fazer senão uma, que era venerável.
Javert sentia que qualquer coisa de horrível penetrava em sua alma, a admiração por um forçado.”

O conflito vivido por Javert, diante do perdão de Jean Valjean, o leva ao suicídio. Abalado com a postura humana do antigo forçado, tido por ele como criminoso e, portanto, irrecuperável, o inspetor passa a questionar a existência de mais coisas no mundo do que “os tribunais, as sentenças executórias, a polícia e a autoridade” (p. 1041). Essa nova concepção de Jean Valjean mostra-lhe que lei é diferente de Justiça; que “nem tudo se enquadrava no texto do código” (p. 1042); que para existir Justiça, há que se pensar em circunstâncias e atitudes. A inflexibilidade da lei só provoca ainda mais injustiça, não a Justiça que ela procura; que o dogma, expresso em magnífico oxímoro, é “fé cega que engendra a probidade tenebrosa” (p. 1043). Atordoado com a descoberta que acabara de fazer Javert vê-se obrigado a confessar-se que (p. 1044):

“A infalibilidade não é infalível, pode existir erro no dogma; nem tudo é dito depois que o código falou; a sociedade não é perfeita; a autoridade é complicada pela vacilação; uma rachadura no imutável é possível; os juízes são homens, a lei pode se enganar, os tribunais podem tomar uma coisa por outra! ver uma fissura no imenso vidro azul do firmamento!”

Conforme diz o narrador, Jean Valjean mostrou a Javert, a “locomotiva” que só conhecia o caminho reto e indiscutível, o seu Caminho de Damasco (p. 1044), a Luz da Verdade, que se revela com o perdão, não com a perseguição. Javert, porém, não teve tempo para assimilar a necessidade de transformação. O peso da inexorabilidade do dogma
— os que cometem crimes são irrecuperáveis — o marcou profundamente. A alma angustiada (“dans le grossissement de l’angoisse”, p. 1045) quer se libertar desse estreitamento (angustia, em latim), que a sufoca. O suicídio, na aflição e contradição violenta em que ele se encontra, é a solução prática, fácil e viável, por não depender de ninguém, só de quem o pratica (p. 1045):

“Ele não tinha senão duas maneiras de sair da situação. Uma era ir resolutamente a Jean Valjean e devolver à prisão o condenado a trabalhos forçados. A outra...”

Jean Valjean, na sua trajetória de redenção, um miserável que vai para o fundo poço e consegue, com um apoio firme, dele sair – a metáfora da pedra no sorvedouro de areia movediça do esgoto é fantástica (“Isso lhe fez o efeito do primeiro degrau de uma escada, retornando para a vida. Já era tempo”, V, 3, 6, p. 1023) –, viveu o seu Caminho de Damasco, em Digne, ainda como forçado recém-liberto, para quem “sair da prisão é mais fácil do que sair da condenação (I, 2, 10, p. 79)”. O perdão recebido das mãos do bispo Myriel Bienvenue é mais do que bem-vindo, sobretudo após o angustiante episódio com o Petit-Gervais. É a Luz que começa a tirá-lo da Caverna, cuja subida íngreme e penosa traduz-se no bem que ele faz à cidade de Montreuil-sur-Mer e aos seus habitantes, com a sua indústria, a melhoria da condição de vida dos operários, os leitos de hospital e a escola, construídos às suas expensas.

O caso Champmathieu é o retorno à Caverna, para revelar a Verdade, novamente com o risco da própria vida, no momento em que a aparência parece ser a única verdade aceitável. Tendo saído das sombras, Jean Valjean deve revelar a Luz aos demais.

Salvar Javert e Marius, sem ter nada que o obrigue a isso, sem testemunhas e com prejuízo para si mesmo (Er) é já a firmeza na escolha feita para a transformação total. A confissão feita a Marius, revelando ser um antigo forçado pelo roubo de um pão, e aceitando resignadamente o desprezo, é a sua libertação total, no sentido de que perdoar é essencial, e só há perdão quando não queremos nada em troca, a não ser a paz com a nossa própria consciência. É sintomático que Jean Valjean deseje apenas uma lápide, sem nome, no seu túmulo (V, 9, 5, 1149 e 1151).

As lições de Victor Hugo são muitas. Os Miseráveis são um imenso livro de que a humanidade ainda necessita e necessitará por muito tempo, como afirma o escritor, em uma página que precede o início da narrativa:

“Enquanto houver sobre a terra ignorância e miséria, livros da natureza deste aqui poderão não ser inúteis.”
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Dentre todas as lições, talvez a mais impactante seja aquela que, sub-repticiamente, o leitor consegue detectar, como substância do livro: sem paz não há Justiça; sem perdão, as duas não existem. A luz do conhecimento é que poderá proporcionar a todos, melhor que qualquer outro meio, optar pelo perdão. Os Thénardier são pessoas más, Jean Valjean, contudo, pede, em seu leito de morte, para perdoá-los.

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