Há muitos mistérios no amor que nem mesmo os envolvidos sabem solucionar, embora, muitos de fora desse processo queiram julgar as suas con...

Os mistérios do Amor

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Há muitos mistérios no amor que nem mesmo os envolvidos sabem solucionar, embora, muitos de fora desse processo queiram julgar as suas consequências.

Os leitores que acompanham o Ambiente de Leitura Carlos Romero hão de se lembrar do Carmen LXXXV de Catulo, aquele famoso poema lírico latino que começa com o paradoxal “amo et odi” (amo e odeio),
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mostrando um eu atormentado em angústia excruciante, por causa de sentimentos incompreensíveis. Sim, incompreensíveis, pois os hormônios descarregados pelo cérebro, na atração sexual, não só obscurecem a razão, mas também associam erotismo e posse. Como o resultado da atração física e do envolvimento é, sem dúvida, prazeroso, o corpo pede mais e qualquer atitude no sentido de perda do companheiro ou da companheira é motivo de uma reação que inclui a posse e o desastre emocional. Relembremos o Carmen LXXXV, em tradução nossa:

Ōdī ĕt ămō, quārē īd făcĭām, fōrtāssĕ rĕquīrĭs. Nēscĭŏ, sēd fĭĕrī sēntĭō ĕt ēxcrŭcĭōr.
Odeio e amo, por que razão eu faça isto, perguntas, talvez. Não sei, mas sinto acontecer e atormento-me.

Chamo à memória esse poema de Catulo (87—57 a.C.), porque o poeta Marcial (42—102 d.C.), que nasceu quase cem anos depois de sua morte, teve no veronense um mestre indiscutível. Recorrentemente, Marcial admite a influência catulana e o demonstra de modo claro quando, em seus poemas, reescreve o seu mestre. É o que ocorre com o Epigrama XXXII, do Livro I dos epigramas, também em tradução nossa:

Nōn ămŏ tē, Săbĭdī, nēc pōssūm dīcĕrĕ quārē: hōc tāntūm pōssūm dīcĕrĕ, nōn ămŏ tē.
Não te amo, Sabídio, nem posso te dizer o porquê: apenas posso dizer isto, não te amo.

Catulo demonstra em seu famoso carmen a confusão emocional a respeito do amor, utilizando para isso o sintetismo da subjetividade lírica. Não saber o que ocorre, mas sentir o que acontece é típico de quem está tomado pela emoção.
Já Marcial, utiliza-se da concisão do epigrama e o alia ao caráter incisivo da ironia, para que o eu seja claro na sua informação: “Não te amo, Sabídio”. Como podemos constatar, o poema é cíclico, começando e terminando com a mesma frase, fechando-se numa explicação que não poderia ser mais clara: “não te amo”. Compreende-se ser mais importante a essência, não as circunstâncias alheias ao fato e que não têm o poder de mudar os acontecimentos.

Por outro lado, o epigrama de Marcial revela ter uma cadência muito harmônica que serve, no primeiro verso, para o esclarecimento do que se quer dizer, quando divide o hexâmetro em duas metades (hemistíquios), pausando-o deliberadamente:

Nōn ămŏ tē, Săbĭdī,// nēc pōssūm dīcĕrĕ quārē:

No segundo verso, a pausa vem em três partes, sendo maior na segunda, preparando a reiteração da afirmação, que dá sentido a um poema, à primeira vista tautológico:

hōc tāntūm// pōssūm dīcĕrĕ,// nōn ămŏ tē.

Ao dialogar transtextualmente com Catulo e reescrevê-lo, Marcial dá um redirecionamento ao sentimento confuso daquele, com a ironia tomando o lugar do sofrimento. Ironia que só se revela inteiramente, quando confrontamos o seu poema com o de Catulo.

O não saber (nescio), resultado de, ao mesmo tempo, amar e odiar, é substituído pela clareza do que se expressa, através de uma precisão na escolha das palavras, que resultam no incisivo “não te amo”. A repetição da expressão do eu a Sabídio opõe-se frontalmente à concisão e densidade do agrupamento dos 4 verbos do poema de Catulo, no segundo verso (nescio, fieri, sentio, excrucior). Nem por isso, o epigrama de Marcial perde em expressividade. A negação do eu-epigramático, ao não querer dizer o porquê de não amar Sabídio, não acontece por ele não ter consciência do fato, como ocorre em Catulo.
Ao contrário, o eu demonstra ter uma noção exata de que não ama e, ao expressar o seu desamor, o faz duplamente com clareza. Em não havendo mais a atração que junta e envolve duas pessoas, a razão toma o lugar do sentimento, procurando expressar-se de maneira inquestionável. Se não ficou claro o que eu disse abrindo o seu discurso, que se esclareça, de uma vez por todas, ao terminá-lo.

Assim são os mistérios do amor. Quando o sentimos, andamos “docemente perdidos”, como diz Camões em seu famoso soneto “O filho de Latona esclarecido”, sobre o deus Apolo, tomado de amor não correspondido por Dafne. Nem o fato de Apolo, dotado de presciência, por ser o deus da profecia, ajuda-o a entender a paixão que o avassala e o repúdio de que é vítima. E, na cegueira da paixão, por mais que se queira dizer o que se sente, torna-se impossível expressá-lo claramente, por se tratar de sentimento e não de racionalidade. Quando já não há sentimento, não há motivo para tantas palavras. A razão age de maneira mais incisiva e mais direta, igual ao sintetismo que o epigrama requer. Eis a diferença básica entre dois poemas que se constroem sob a forma de dístico elegíaco – dois versos, sendo o primeiro um hexâmetro e o segundo um pentâmetro. Aquele poema que revela o amor e a sua natural confusão é um carmen lírico; aquele que expressa o desamor, tratando-o sumariamente e com ironia, é um epigrama.

Mistérios que só os poetas sabem como decifrar.

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