Alguém disse que é preciso estar sob teto da Sistina para se ter ideia do que um ser humano é capaz. Eu diria o mesmo sobre a leitura de q...

Breve inquérito sobre a genialidade

literatura paraibana solha entusiasmo extase arte genialidade
Alguém disse que é preciso estar sob teto da Sistina para se ter ideia do que um ser humano é capaz. Eu diria o mesmo sobre a leitura de qualquer dos maiores poemas — clássicos e contemporâneos —, embora a pintura tenha a vantagem de que, numa vista d'olhos, se mostra, de imediato, inteira. Mozart dizia que, ao imaginar um concerto ou sinfonia, podia abarcar a obra com um único olhar, “como se se tratasse de um quadro ou estátua”, e esse momento, assegurava, “é indescritível”.

Devia ser.

Acredito, porém, que uma leitura literária completa da Bíblia seja até capaz de nos causar maior plenitude que a visão michelangelesca — que ficou num Gênesis cercado de profetas e sibilas.
Principalmente com a intervenção grega do Novo Testamento, que lhe deu fecho para o aristotélico princípio-meio-e-fim, equilibrando a Criação com o Apocalipse – que o gênio renascentista sintetizou no Juízo Final criado para a parede atrás do altar. Com isso, ficava-se com uma teoria sobre nossa origem e sobre quem somos e para onde vamos.

Também a Ilíada deu ao homem do seu tempo e lugar sua visão do invisível. A narrativa, transcorrendo em dois planos, humano e divino, deu origem a toda a arte sacra ocidental, sempre com indivíduos especiais compartilhando grandes eventos com deuses e semideuses ou seus equivalentes, como se vê no Enterro do Conde de Orgaz, de El Greco, no qual o corpo do personagem é amparado por Santo Estevão e Santo Agostinho, no que os céus se abrem para que Cristo e a Virgem, mais todos os santos e anjos recebam a alma do bem-aventurado, numa adaptação bem mais feliz que a de Camões ao pôr, n'Os Lusíadas, por exemplo, Vênus salvando Vasco da Gama de uma tempestade e ele agradecendo o milagre à Virgem Maria. Sem falar que a criação é muito mais solta, na Ilíada.

Assombra-me ver em obra tão distante no tempo, como a do grego, figuras – por exemplo — que lembram o dourado andróide C3PO de Guerra nas Estrelas – de George Lucas, e sua matriz, o robô feminino do Metrópolis de Fritz Lang:

“Eram duas servas de ouro como se fossem mulheres vivas. Havia em seu peito espírito e voz e força e elas eram dotadas de habilidade manual, graças aos deuses imortais”.

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A Eneida de Virgílio conta a origem divina de César Augusto, transpondo a mitologia grega para a romana com uma desenvoltura que a faz superar sua matriz. A começar pela criação de cenas cinematográfica como esta: “De súbito, o calor abandonou as entranhas da desventurada, caiu-lhe da mão a lançadeira e desenrolaram-se os fios”. Ou esta, digna de uma superprodução: “Uma escura seara de espadas nuas estende-se em grande extensão, os bronzes fulgem batidos pelo sol e se refletem nas nuvens.”

Já A Divina Comédia é um megaespetáculo que me parece ter encontrado sua plenitude nas ilustrações de Gustave Doré. Frequentemente damos com um verso famoso, nela, como “lasciate ogni speranza, voi ch'entrate” (Deixai toda esperança, vós que entrais!) ou “Nessun maggior dolore che ricordarsi del tempo felice nella miséria” (Nenhuma dor maior do que a de recordar o tempo feliz na miséria).

Gustave Doré, 1861
Essas obras têm tal densidade, que resistem às traduções. Em Leaves of Grass, de Walt Whitman, a mutilação começa do título, Folhas de Grama, Folhas de Relva e Folhas de Erva. Mas sua torrente verbal flui sempre com a força que rompeu todas as limitações, técnicas e de conteúdo, em pleno século XIX, influenciando outros gigantes posteriores, como Lorca – que escreveu uma Ode to Whitman, e Fernando Pessoa, que criou sua Saudação a Walt Whitman, na qual diz:

"Sou dos teus, tu bem sabes, e compreendo-te e amo-te!"

Novos tempos e surge T.S.Eliot com The Waste Land (Terra Desolada — ou Devastada), que tem a poderosa marca degringolada de sua época (1922), em que Picasso e Kandinsky, como a recente guerra, arrebentavam com tudo:

"Eu sei lá o que eu quis dizer com o livro! Não sabemos que coisa nos pesa no peito antes de a conseguirmos tirar de lá."

Exatamente o contrário do que disse Mozart, mas... os tempos eram outros. Enfim: há, nos grandes poetas, uma extrema habilidade no uso estético das palavras, incluindo nisso o ritmo que os antigos conseguiam artificialmente – através do metro e rimas rigorosos – e, os modernos, utilizando a percepção aguda da musicalidade das palavras e frases, como se vê num dos Trinta e Dois Curtas Sobre Glenn Gould (Thirty Two Short Films About Glenn Gould) - documentário de François Girard — em que o pianista canadense rege, em êxtase, uma locução que ouve pelo rádio.


Mas isso nada seria se esses poetas não tivessem aquilo que os intelectuais costumavam designar, no século passado, de weltanschauung, que o Houaiss define como “conjunto ordenado de valores, impressões, sentimentos e concepções de natureza intuitiva, anteriores à reflexão, a respeito da época ou do mundo em que se vive. Cosmovisão. Mundivivência.”

Bom.

O prefácio à 3ª. edição de Dom Sertão, Dona Seca, de Otávio Sitônio Pinto, eu o iniciei como este texto de hoje:

literatura paraibana solha entusiasmo extase arte genialidade
Alguém disse que se você quiser saber do que, de grandioso, um ser humano é capaz, ponha-se na  Sistina. Mas — prossigo — o vasto, bíblico  Semi-Árido Irregular brasileiro, outrora Polígono das Secas - que se estende por oito estados (Paraíba, Piauí, Ceará, Rio Grande do Norte, Pernambuco, Alagoas, Sergipe, Bahia) e parte do norte de Minas — já produziu vários livros monumentais de igual poder, como Os Sertões, Grande Sertão: Veredas, O Romance da Pedra do Reino e — aqui mesmo, na Paraíba do Ariano —  esse gigantesco ensaio de Otávio Sitônio Pinto, publicado pela editora A União em 2002, e — mais recentemente — pela Patmos.

Genialidade é isso.

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