Saudade no peito, É como fogo de monturo. Por fora tudo perfeito, Por dentro, fazendo furo. (Patativa do Assaré) ...

Ah, esses domingos...

Saudade no peito, É como fogo de monturo. Por fora tudo perfeito, Por dentro, fazendo furo.
(Patativa do Assaré)

Domingo, como o que passou, para mim é uma tortura. Dia dos pais. Tempo de recolhimento, de introspecção, nada para comemorar. Fico aguardando os telefonemas dos filhos e netos distantes, esparramados nesse mundão de Deus. É o que traz um pouco de conforto e vem de bandeira branca pedindo para minhas saudades darem uma trégua. Ouvir suas vozes, mesmo que estejam afastados por muitas latitudes, traz-me aqueles hiatos de bem aventurança. Dura pouco, mas alivia.

Já foi o tempo em que essa data era motivo de euforia. Quanta saudade desses dias. Mal despertava ainda nos cobertores me protegendo dos frios de agosto e logo chegavam eles, pulando como uma tropa de cabritinhos trazendo seus pacotinhos cheios de presentes e ternuras.

Fui recolher alguns cacos dessas doces recordações.

Abro aqui um inquilino de minhas estantes: “Livros que mais influenciaram a humanidade” de Martin Seymour-Smith e lá está a dedicatória de minha caçula, a raspa de tacho do segundo casamento: “Papai, esse livro que eu dei foi com muito carinho. Assinado: Gabriela”. A data? Faz tempo: 11/8/2002. Dia dos pais daquele ano. Então eu pergunto: Como não umedecer os olhos? Como não lembrar da menininha que já “engenherou-se”, casou-se... E foi-se.

Acho engraçado como as crianças, antes de lavrarem seu jamegão gostam de colocar o “assinado”. Creio que seja para dar mais ênfase e até respeito à chancela. Fica mais pomposo, mais pimpão.

Como uma lembrança leva à outra, abro mais um tomo: “Guerra sem batalha” de Heiner Müller.
A data, um pouco mais lá para trás, 97 e lá estavam as dedicatórias. “Pai, eu gosto muito de você. Te amo, Yuri. Fim. Este ‘Fim”, deve ter sido para reiterar que não havia mais nada a dizer. E precisava? “Pai, que este livro de ajude a entender mais a nossa história. Beijos, Te amo. Cauê”. Aí doeu muito. Cauê foi uma das joias que devolvi, o filho que fez aquela viagem antes do combinado. “Pai, espero que goste. Larissa”. A menininha pragmática. Fui buscar o nome no filme “Doutor Jivago”.

Depois a dedicatória de Ariadne: “Pai, espero que esse presente ajude a enriquecer a sua maneira de ver o mundo. Um beijo grande dos seus filhos”. Num cantinho página, um rabisco, como que se alguém tentasse registrar ali seu agradecimento. Quem assinou aquela garatuja por ele; Iago, que tinha só 3 anos?

Mas enfim, era dia de aguardar, de esperar, nada mais.

O tempo se arrastou vagaroso e em intervalos nada regulares. as ligações chegavam. Cada uma que eu atendia era uma ferida a menos, uma dor que deixava de doer. O primeiro telefonema chegou quando eu mal despertara e o último quando seu estava para me recolher. Até dei uma esticadinha nas conversas. Não sou muito de ficar ao telefone, mas estava ávido por notícias e essas maravilhas da tecnologia nos colocam frente a frente, olhos nos olhos com nossos entes queridos que estão distantes.

Como o neto caçula está grandinho. Já engatinha? Não, mas já consegue ficar sentado se sem ajuda, pai. E o outro começando o Ensino Médio anda me consultando em coisas de Matemática. Eu pergunto: Entendeu a lei dos senos que lhe expliquei na semana que passou? Entendi vô, agora preciso que explique a lei dos cossenos. Eu explico só se você cortar esse cabelo. Ele não vai cortar, mas eu não vou deixar de atender esse pedido. O outro está em férias escolares lá no hemisfério de cima, viajando com a mãe, mandou fotos para repartir comigo sua euforia.

Assim fui levando meu barco nesse domingo de agosto, matando um pouco da saudade de filhos e netos. Talvez esse banzo venha da constatação de que eu já tenha feito a minha parte nesta tal de vida. O que fiz está feito, o que não fiz, acho que não dá mais tempo. Agora é a vez dos que vieram de mim. A consciência está tranquila, aos filhos dei régua e compasso para traçassem os bons caminhos, encontrassem as melhores veredas e que pudessem combater os bons combates. É lado bom de tudo isso. Sei que consciência e saudade não se misturam. A primeira tem me sido boa companheira, enquanto que a segunda, teima em duelar comigo e sempre levando nítida vantagem, como nesse domingo que passou. Fazer o quê? O resto é silêncio.

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