O poeta Luís Vaz de Camões questiona algumas vezes, em Os Lusíadas, o descaso para com as artes, sendo o epílogo do poema o momento mais sintético e mais claro desse questionamento, sem as amenizações metafóricas de outras partes. Ao despedir-se o poeta de tão longa narração, ele expressa o seu lamento final, a respeito do fato, dedicando, ainda, 11 estrofes até o fechamento do poema (Canto X, Estrofe 145):
Nô-mais, Musa, nô-mais, que a Lira tenho
Destemperada e a voz enrouquecida,
E não do canto, mas de ver que venho
Cantar a gente surda e endurecida.
O favor com que mais se acende o engenho
Não no dá a pátria, não, que está metida
No gosto da cobiça e na rudeza
Dũa austera, apagada e vil tristeza.
"Praia da Ursa, Portugal"Alfred Keil, 1912 ▪ Museu de Sintra (Wikimedia, Domínio Público)
Cessem do sábio Grego e do Troiano
As navegações grandes que fizeram;
Cale-se de Alexandro e de Trajano
A fama das vitórias que tiveram;
Que eu canto o peito ilustre Lustiano,
A quem Neptuno e Marte obedeceram.
Cesse tudo o que a Musa antiga canta,
Que outro valor mais alto se alevanta.
"A partida de Vasco da Gama"Roque Gameiro, S.XIX ▪ Biblioteca Nacional de Portugal (Wikimedia, Domínio Público)
Trata-se de situação recorrente no poema, para lamentar a pouca cultura da sociedade e de seus líderes; sociedade imperial, de guerra de expansão, tão diferente daquelas que abrigavam guerreiros leitores, como é o caso de Augusto César (estrofe 95) – “Octávio, entre as maiores opressões,/Compunha versos doutos e venustos” – ou de Alexandre e de César, o Júlio (estrofe 96 do mesmo Canto V), origem da discussão aqui levantada:
Vai César subjugando toda França
E as armas não lhe impedem a ciência;
Mas nũa mão a pena e na outra a lança,
Igualava de Cícero a eloquência.
O que de Cipião se sabe e alcança
É nas comédias grande experiência.
Lia Alexandro a Homero de maneira
Que sempre se lhe sabe à cabeceira.
"Aqueduto da Ponte Pedrinha, em Queluz"Alfredo Keil, 1878 (Wikimedia, Domínio Público)
Enfim, não houve forte Capitão
Que não fosse também douto e ciente,
Da Lácia, Grega ou Bárbara nação,
Senão da Portuguesa tão-somente.
Sem vergonha o não digo: que a razão
De algum não ser por versos excelente
É não se ver prezado o verso e a rima:
Porque quem não sabe a arte, não na estima.
"Lisboa vista do Ginjal"Alfredo Keil, S.XIX (Wikimedia, Domínio Público)
— Ó glória de mandar, ó vã cobiça
Desta vaidade a quem chamamos Fama!
O fraudulento gosto, que se atiça
Cũa aura popular, que honra se chama!
Que castigo tamanho e que justiça
Fazes no peito vão que muito te ama!
Que mortes, que perigos, que tormentas,
Que crueldades neles experimentas!
"Serra do Pilar, Gaia"James Holland, 1838 (Wikimedia, Domínio Público)
Porque quem não sabe a arte, não na estima
Canto V, estrofe 97
Não no dá a pátria, não, que está metida
Canto X, estrofe 145
Nos dois versos, observa-se construção semelhante, em “não na estima” e “não no dá a pátria”. O poeta poderia ter usado “não a estima” e “não o dá a pátria”, mas decidiu evitar um hiato mais difícil, utilizando da naturalidade da imposição fonética, traduzida na Lei do Menor Esforço, tantas vezes evocada por nós,
Camões ▪ Museu de Arte Antiga
A prolação resultante da nasalidade do advérbio “não” – não a > não na; não o > não no – só é possível porque existente no sistema da língua, sendo a Lei do Menor Esforço determinada pela fonética, como uma possibilidade que permite a escolha do poeta. Segundo o linguista Fernando Venâncio (Assim nasceu uma língua, Lisboa, Guerra & Paz, 2023, p. 115), até a década de 50, na sua adolescência, na região do Minho, ele ouviu formas semelhantes, compartilhadas com a língua galega – “Quem no tem?”, “Eu bem nas vi chegar”. Esclareça-se que não se trata de uma lei ditada por gramáticos, mas pelo sistema da língua. Ainda que, atualmente, tais formas estejam destinadas ao desuso, podemos constatar como a nasalização torna a frase mais fluida, tendo em vista que todo o aparato fonético – língua, lábios, dentes – requer menos esforço de prolação em “não na” e “não no”, do que o contrário. Com isto, o poeta garante ao seu verso decassílabo, uma melodia harmoniosa, compatível com a necessidade, que ele vê desprezada, em (Canto V, estrofe 97):
Sem vergonha o não digo: que a razão
De algum não ser por versos excelente
É não se ver prezado o verso e a rima:
Camões, que seria grande apenas por nos legar a língua portuguesa moderna, a partir da publicação de Os Lusíadas (1572), torna-se grande e gigantesco com uma poesia, épica e lírica, que continua a nos dar lições de amor à língua e à cultura.