Waterloo , Livro I da Segunda parte de Os miseráveis ( Cosette ), faz a ligação deste romance ao cerne da narrativa, que se concentra ...

Os miseráveis (Segunda parte: de Waterloo ao convento)

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Waterloo, Livro I da Segunda parte de Os miseráveis (Cosette), faz a ligação deste romance ao cerne da narrativa, que se concentra na Quarta parte (O idílio da rua Plumet e a epopeia da rua Saint-Denis): o levante de 1832 contra o rei Luís-Filipe, reafirmando a frase de Victor Hugo, sobre o espírito libertário da França, expresso como “o indomável levante francês” contra
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G. Brion, 1862
as monarquias (II, 1, 17, p. 276). Mas não é só disso que o longo Livro I trata. Ele mostra, a um só tempo, a sublimidade da luta pela liberdade, traduzida numa carnificina, e a vileza do saqueador de mortos, cristalizada na figura de Thénardier. Victor Hugo faz jus ao que escreve no prefácio de sua tragédia Cromwell: na literatura, o sublime e o grotesco são as duas faces de uma mesma personalidade humana. Ao mostrar as duas pontas entre o alto e o baixo – Napoleão e Thénardier – Hugo introduz Marius, na figura do coronel Pontmercy, saqueado pelo ladrão, mas que pensa ter sido ajudado, estabelecendo uma ponte imediata com a Terceira parte, Marius, o filho do coronel.

Na perspectiva de Victor Hugo, a batalha de Waterloo faz um percurso da magnificência à baixeza. Paradoxalmente, a derrota de Napoleão o torna ainda maior, elevando-o à condição de homem que, de uma forma ou de outra, mudou a face do século XIX. O gigantismo de Napoleão, derrotado por uma força de coalizão entre Inglaterra e Prússia, só foi possível pela ação caprichosa do destino, desfiando uma série de acasos que o levaram à derrota – “Quid obscurum, quid divinum” (“Algo obscuro, algo divino”, II, 1, 5, p. 251). Ainda assim, ele sai engrandecido, ao contrário do inglês Wellington que se apequena. Thénadier é a baixeza do
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saque aos mortos transformada em falsa glória, por não haver testemunha de sua vileza. Todo o esplendor, que acompanhamos por 18 capítulos, se desfaz no último, com a atitude de Thénardier, roubando alguém que ele supõe morto, mas fingindo ajudá-lo, quando o percebe vivo.

O Livro I, Waterloo, se dispõe, portanto, a fazer o contraponto da magnificência da batalha, alçada à condição de trágica luta titânica, submetendo o herói à queda determinada pelos deuses do destino, com a baixeza do homem comum. Até nesse momento, vemos como Victor Hugo tem Aristóteles na cabeça: trata-se da diferença entre os homens melhores do que nós, e os homens piores do que nós, estabelecida pelo filósofo, na Poética. Além de, como já sabemos, o acaso ser obra da Tyche, desdobrando-se, ao sabor da (ir)reflexão humana, em ventura ou desventura.

Entre as duas pontas, Napoleão e Thénardier, está Cambronne, com o gesto desabusado, a mandar o exército inglês à merda. Cambronne é o único vitorioso da grande batalha, que envolveu cerca de 400 canhões (II, 1, 3, p. 247), 72.000 combatentes de cada lado (II, 1, 16, p. 275), numa carnificina
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que chegou a 60.000 mortos (idem). Vitorioso pela ousadia, pelo atrevimento, por preferir a metralha à rendição (II, 1, 13, p. 272), pela contribuição à língua francesa que passará a eufemizar a palavra “merde!” (II, 1, 14, p. 271), dita de forma enfática, como “le mot de Cambronne”, a palavra de Cambronne.

Por que Cambrone é o vencedor? Por “afogar em duas sílabas a coalizão europeia, oferecer aos reis essas latrinas já conhecidas dos césares, fazer da última das palavras a primeira e nela misturando o relâmpago da França, fechar insolentemente Waterloo pela terça-feira gorda, completar Leônidas por Rabelais, resumir essa vitória em uma palavra suprema, impossível de pronunciar, perder o terreno e preservar a história; após essa carnificina ter a seu lado os que riem, é imenso” (II, 1, 15, p. 271).

A Segunda parte de Os miseráveis centra a sua narrativa na promessa de Jean Valjean a Fantine, buscando a libertação de Cosette das mãos dos Thénardier, e na sua proteção, impedindo que ela seja tragada pela miséria que consumiu sua mãe (Livro I, Fantine). Concomitantemente, Jean Valjean enfrenta a sanha de Javert, que o descobre em Paris, após
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a sua fuga da prisão de Toulon. Ao contrário das outras tentativas de fuga malsucedidas, que agravaram a pena inicial de 5 para 19 anos, dessa vez a fuga não é apenas exitosa, ela é justa, tendo em vista que Jean Valjean, após o episódio do julgamento em Arras (I, Livros 6-8), é preso por Javert, sem ter cometido qualquer crime. O único delito que se lhe poderia imputar é o de ter ficado com a moeda de quarenta soldos do Petit-Gervais, de que ele se apodera, não por roubo, mas por estar imerso nas suas angústias e dúvidas (“Pensamentos inexprimíveis se amontoaram assim nele, por todo o dia”), quando pisou sobre ela (I, 2, 13, p. 87), só se dando conta, com efeito, da moeda, depois que o Petit-Gervais se foi (I, 2, 13, p. 88):

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Não havia, portanto, crime contra ele, para justificar a perseguição implacável de Javert, creditada à sede de uma justiça cega e inflexível, além de surda para ouvir os argumentos, em favor de quem está sendo julgado.

Ao fugir de Toulon e da prisão perpétua (II, 2, 3, p. 295-296), Jean Valjean o faz menos por sua liberdade e mais pela sua promessa de resgatar Cosette da exploração dos Thénardier. É uma atitude humanitária, altruísta, caridosa, por estar pensando mais no outro do que em si próprio. É a continuidade de sua ação em prol de outrem, quando se apresentara diante da corte de Arras, revelando-se como Jean Valjean, despindo-se da capa de M. Madeleine, de modo a evitar a injustiça, mais do que desumana, de deixar que alguém vá preso e
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condenado à prisão perpétua em seu lugar.

Livrar Cosette da escravidão dos Thénardier, buscar um lugar seguro em Paris, mesmo que seja o pardieiro da casa Gorbeau; fugir das novas investidas de Javert e de suas armadilhas, chegar pelas mãos da providência, de modo clandestino, no convento do Petit-Picpus, dali fazer uma nova e espetacular fuga, dentro de um caixão de defuntos, para lá novamente entrar, de modo legal, como irmão de Fauchelevant, sendo admitido como ajudante de jardineiro, e conseguir os estudos de Cosette, como obra de caridade do convento, são ações que recheiam a trama de suspense, mas que não se exaurem no romanesco. O convento é o espaço desejado por Jean Valjean, que o abriga, que o alivia (“Uma vida muito suave recomeçava para ele”, II, 8, 9, p. 449), que lhe concede a chance de refletir sobre a sua vida e a transformação de que ele foi objeto, duplamente pelo amor: do bispo Bienvenu por ele e dele por Cosette (II, 8, 9, p. 453):

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Gravura de Os miseráveis (Segunda Parte), de Victor Hugo ▪ edição original (Lacroix, Verboeckhoven & Cie) ilustrada por Gustave Brion, 1862 ▪ Fonte: Gallica
Ao final da Segunda parte de Os miseráveis, a transformação de Jean Valjean está quase pronta. Ao ser acolhido pelas freiras no convento de Picpus, Jean Valjean se ajoelha uma segunda vez, na sua trajetória, em agradecimento. Na situação anterior, quando ele se ajoelhara diante da casa do Bispo (I, 2, 13, p. 92), era o reconhecimento pelo perdão recebido. Desta vez, no convento, é o reconhecimento e agradecimento não apenas por si, mas, sobretudo, pela salvação de Cosette.

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G. Brion, 1862
Cosette se torna a sua afirmação na virtude; ele e ela se constituem num ponto de equilíbrio, um apoiando e reforçando o outro. Ele, tirando-a da miséria e lhe proporcionando uma vida; ela, mantendo-o no propósito amoroso do bem, apregoado pelo bispo Bienvenu, ao comprar a sua alma, com a prataria e os castiçais.

Ainda é importante ressaltar a relevância dos Livros VI (Le Petit-Picpus, O Pequeno-Picpus, 11 capítulos) e VII (Parenthèse, Parêntesis, 8 capítulos). É o estilo de Victor Hugo, preparando sempre o caminho ao leitor com alguma tese, algum comentário mais minucioso e reflexivo, que parece não ter sentido na narrativa, sobretudo para quem espera mais aventura do que reflexão. A vida monacal, atacada por Hugo quando se exaure na esterilidade (“Enclausuramento, castração”, II, 7, 3, p. 405) ou na exacerbação do dogma (“Não levemos jamais a chama, lá onde a luz é suficiente”, II, 7, 3, p. 407), é resgatada quando se traduz na força da prece, estabelecendo uma conexão com Deus (II, 7, 5, p. 409):

“Existe um eu no infinito do alto, como existe um eu no infinito de baixo. O eu de baixo é a alma; o eu do alto é Deus. Colocar pelo pensamento
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o infinito de baixo em contato com o infinito de cima, isso se chama orar.”

Importante e bem concatenada é a página comparativa entre os dois muros, dentro dos quais Jean Valjean estivera cativo – a prisão, em Toulon; o convento, em Paris –, e entre os companheiros de prisão e as freiras. Trata-se do encerramento de uma vida de sofrimentos inenarráveis, para ambos, Jean Valjean e Cosette. E Hugo nos brinda com uma das mais belas páginas literárias, revelando que há clausuras e clausuras, e que enclausurar-se para se abrigar das injustiças do mundo, sobretudo quando se trata de alguém puro como Cosette, é perfeitamente compreensível e recomendável à saúde espiritual (II, 7, 8, p. 412-413):

“De resto, nesse instante que nós atravessamos, instante que felizmente não deixará sua imagem no século XIX, nessa hora em que tantos homens têm a fronte baixa e a alma pouco alta, entre tantos viventes tendo por moral gozar, e ocupados das coisas breves e disformes da matéria, quem quer que se exile nos parece venerável. O mosteiro é uma renúncia. O sacrifício que leva ao falso é ainda sacrifício. Tomar por dever um erro severo tem a sua grandeza.”
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O contraponto entre o turbilhão do mundo de fora e a paz do mundo de dentro desvela a ignomínia em confronto com a pureza; a invectiva confrontada pela prece; o desespero face à esperança; a tristeza contra a alegria; a altivez rebaixada a golpes de chicote diante daquela rebaixada pela humildade; é o rancor sendo substituído pela piedade; o assassino, o bandido, o ladrão, mergulhados no mundo da vileza, do ressentimento e da vingança, sendo trocados pela amorosidade e pelo perdão. É, enfim, a pureza inocente de Cosette, contra a maldade calculada e cruel dos Thénardier; a capacidade de perdoar de Jean Valjean fazendo frente ao rancor inflexível de Javert.

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