Um verso só pode ser entendido de modo adequado, só tem seu sentido pleno na estrutura poética única, integral, a que pertence: ou seja...

Os versos no meio da rua

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Um verso só pode ser entendido de modo adequado, só tem seu sentido pleno na estrutura poética única, integral, a que pertence: ou seja: no poema. Citar versos isoladamente, deslocados de sua estrutura original, pode produzir uma mutilação, um empobrecimento, um desvio de sentido, levando, muitas vezes, a uma interpretação equivocada. Em alguns casos, há um desvio tão grande de sentido que a citação chega a ser um desrespeito ao autor do poema.

O hábito brasileiro do adágio, da frase feita, da frase de efeito resolveu incorporar a pobre poesia ao pacote de citações, e a presença de versos em todos os lugares, infelizmente, virou moda. A moda, que causa estragos em todos os
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Clara Beatriz
lugares por onde passa, às vezes virando pelo avesso o valor essencial de seres e de coisas, também resolveu estragar a poesia. Virou moda citar versos ou pedaços de poemas em discursos, em TCCS, em dissertações e teses (mesmo que de Administração, Contabilidade, Bioquímica), em missas, em sessões espíritas – até em cultos. Por conta da moda (essa força que cega as volúveis almas sem face), os poemas, que ninguém vai ler, têm seus versos usurpados, descaracterizados e muitas vezes utilizados como meros adornos num contexto que lhes é completamente impróprio. Mas o que podemos contra a moda, além de denunciar a sua presença deletéria?

Há versos de grande força expressiva, mas cuja qualidade só ganha relevo mesmo na estrofe ou no poema em que está inserido. Em geral, é o que acontece. Mas há versos que, mesmo destacados do poema a que pertencem, ainda que ultrajados como epígrafe de um TCC de Couros e Tanantes, ainda que gritados ou balbuciados por um bêbado no meio da rua, caem, por motivos às vezes inexplicáveis, no gosto popular porque produzem uma emoção especial (aquilo que Drummond chama de “arrepio verbal”) até mesmo num desafeto da poesia – e, é claro, cada um tem o arrepio verbal que merece. Uns, com Dante; outros, com J. E.

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O verso “O bicho, meu Deus, era um homem”, extremamente expressivo no poema em que está inserido, ouvido, isoladamente, por quem não conhece o poema, perde 90% de sua força. Já um verso como “E agora, José?”, tão simples, mas de tanta força no poema a que pertence, conseguiu despregar-se do poema e conservar sua força nas situações mais comezinhas do cotidiano. Versos assim são adotados pelo povo em geral e se tornam inesquecíveis, passam a ser patrimônio de uma cultura ou de um povo, e ilustram quaisquer dois dedos de prosa corriqueira de pessoas do meio literário e até mesmo de pessoas que jamais lerão um poema.

“A mão que afaga é a mesma que apedreja.”
“Quem quer passar além do bojador, tem que passar além da dor.”
“O mito é o nada que é o tudo.”
“A dor das coisas que passaram.”

São versos que possuem grande força expressiva, mesmo deslocados do seu núcleo integral que é o poema, e, por isso, citados com relativa propriedade ou estropiados pelo contexto a que não pertencem, infelizmente tomam o rumo que o irresponsável usuário da língua resolve lhe dar.

Confesso que eu mesmo, quando jovem, mantinha centena de versos de plantão e, irresponsavelmente, mais de uma vez dissipei belos versos, citando-os fora do seu contexto originário. Nunca me esqueço de que certa vez, naquela época, após me fazer esperar para mostrar-se num streap-tease, a streaper perguntou-me: “Valeu a pena?” E eu que,
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mesmo estando num cabaré, sempre fui um nefelibata, desci os versos de Pessoa aos pés da streaper: “Tudo vale a pena se a alma não é pequena”... Ela, percebendo os versos apenas como uma frase de efeito, foi colher no seu repertório televisivo algo que lhe parecia retoricamente similar e disparou imediato: “Sempre cabe mais um quando se usa Rexona”. Eu, despencando das nuvens e caindo na realidade, rendi-me ao universo do bordel e da propaganda e, trocando a poesia por outro slogan, “recitei” baixinho apenas para mim mesmo (que me sentia o único imbecil naquele ambiente): “Cada óleo tem a quilometragem que merece.” E nunca mais citei versos isolados.

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