Nestes anos mais recentes tenho ido à farmácia quase na mesma frequência que à padaria. Não é de agora. Mas só agora, sem muita estrada...

Coisas incuráveis

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Nestes anos mais recentes tenho ido à farmácia quase na mesma frequência que à padaria. Não é de agora. Mas só agora, sem muita estrada à vista, essa preocupação começa a tecer sombras e puxar lembranças a ponto de empanar-me os passos mais rotineiros.

Uma das lembranças trazidas a cada crise de rinite: a do velho Joca Leite, que tanto me repugnava a assoar-se a cada palavra das conversas com meu pai - a coriza expelida no estalo dos dedos. Coisa de nada, mas que não passou ilesa na composição que tanto exigiu do ofício de meus sonhos, o “Retrato de memória”. Não podia nunca imaginar que o defluxo crônico de uma criatura tão passageira viesse castigar o nojo, sem pecado, de criança tão remota no tempo. Ainda bem que entre as vantagens inumeráveis da modernidade posso contar com a discrição higiênica do lencinho descartável.

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Saí para a farmácia em busca de um antialérgico do qual não me ache ainda viciado, e, mesmo com os olhos no chão na noite sofrivelmente iluminada, tropeço numa cabeça com todo o corpo enrolado em lona escura, arrimado, do lado de fora, à parede de vidro do estabelecimento. Um embrulho dos muitos ou milhões que o clichê de hoje identifica como gente “em situação de rua.”

O embrulho mexeu-se, assustei-me, e apurando as vistas, tentei desvendar seu rosto e pedir desculpa. Esperei o bastante para me convencer que a peitada fora bem menos pesada que aquele seu sono solto, a forte corrente de ar da minha rua a passar a mão naquela mísera cabeça devolvida às leis da natureza.

Pois bem, mal me retiro, alguns passos depois, quase na mesma calçada, estaco fuzilado por dois olhos da cor de brasa, entre assustados e furiosos, que se arrancam do fundo de uma sacola do tonel de lixo aturdidos pela minha chegada ou pelo meu espanto.

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Mastigava, parou de mastigar e, pilhado nesse rebaixe, lançou fora o que tinha na boca numa reação que me assustou. Parado estava, parado fiquei, um diante do outro, ele reclinado com os dois braços apoiados nas beiradas do tonel, eu sentindo o gatilho dos seus olhos a me reter a voz e qualquer atitude. Não senti medo, tenho certeza. Senti pior, coisa como um desengano forte, súbito, sempre súbito, apesar de manchetes como a desta semana: “33 milhões de brasileiros não têm o que comer” (Rede Globo)

Preparei-me mudo para entregar o que restasse no bolso, o relógio do pulso, a carteira. Ainda passei a sacola da farmácia para a mão direita resolvido a puxar a carteira com a esquerda. Nada me ajudava, o estacionamento deserto, nenhum carro que chegasse, nenhum freguês.

Desci os olhos até seus pés, a calça rota e sem cor mal chegando aos tornozelos, tão magros quanto os meus. E consegui ver, então, que podia respirar, ter voz, podendo falar qualquer coisa que não fosse o que tanto me repugnara, aquele bocado sujo lançado e cuspido fora.

Ele retorna o olhar para dentro do tonel, faz lá sua reavaliação, e de repente desembesta em demanda do deserto escuro que é o trecho entre lojas fechadas de um lado e o alto paredão da Igreja Universal da Epitácio Pessoa. Sem olhar para trás, sem me dar chance de ter feito a entrega a que estava resolvido. Mas já sem me lembrar do que me levara à farmácia.

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