Chegada ao Peru Em outubro de 1993, recebi um telefonema do saudoso engenheiro Sergio Augusto Caporali, amigo e colega de turma no ...

Agruras de um consultor na terra dos Incas (parte 1)

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Chegada ao Peru

Em outubro de 1993, recebi um telefonema do saudoso engenheiro Sergio Augusto Caporali, amigo e colega de turma no curso de Engenharia Sanitária da USP em 1971. Estava nessa ocasião como Diretor do Centro Pan-americano de Engenharia Sanitária e Ciências do Ambiente (CEPIS/OPAS/OMS), com sede em Lima, Peru. Havia me indicado para trabalhar como consultor independente durante três meses, a partir de janeiro do ano seguinte, nas cidades peruanas de Chimbote, Piura e Tumbes. Meu trabalho consistiria em realizar o diagnóstico da área comercial das empresas municipais de saneamento dessas cidades.
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Era um contrato financiado pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) para a empresa Deutsche Beratungs-Gesellschaft fur Hygiene und Medizin mbH, com sede em Frankfurt, Alemanha, consorciada com a empresa peruana Asociación SANIPLAN-AMSA. Este contrato fazia parte do Programa de Melhoramento do Setor de Saneamento Básico do Projeto PE-0032 PERU/BID.

Meu contrato foi assinado, com início previsto em 17 de janeiro de 1994, e conclusão em 15 de abril desse mesmo ano. O escritório da firma onde iríamos trabalhar estava situado na cidade de Chimbote. A empresa peruana era dirigida pelo engenheiro César Tapia que, posteriormente, chegou a ministro do governo peruano. Seu assistente era o estatístico Pedro Sandoval e o escritório se localizava na Calle Las Palomas, 398, no distrito de Surquillo, em Lima, bem próximo do ginásio cujo proprietário foi um grande boxeador peruano, de fama internacional, conhecido como Mauro Mina.

Street View: Calle las Palomas, Lima, Peru
Cheguei a Lima ao final da segunda semana de janeiro de 1994. Fui primeiro visitar Caporali no CEPIS para agradecer minha indicação para essa consultoria. Ele era muito brincalhão e, quando cheguei a seu escritório, me disse: "Quando voltar de Chimbote, vai passar pelo menos 15 dias com os gatos a persegui-lo". Fiquei curioso, porém nada perguntei a respeito.

Logo que cheguei no escritório da firma peruana, tivemos algumas reuniões para orientação sobre a consultoria, apresentação de alguns consultores que iriam participar do projeto etc. Conheci, então, meu futuro coordenador e o diretor. Não simpatizei muito com o meu futuro chefe. Possuía um bigodão e tinha cara de mau. Era administrador de empresas. Seu nome: Augusto Hidalgo Sánchez.
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Augusto Sánchez FBook
Após essa consultoria, veio a assumir o cargo de Gerente Geral do “Gobierno Regional de la Libertad” e ali ficou por dois anos. É, atualmente, professor doutor da “Universidad Nacional Mayor de San Marcos”, em Lima, no Peru. Logo, pensei com meus botões: Será que vai dar para aguentar esse cara por três meses? Felizmente, ele era totalmente o contrário do que esperava. Tornamo-nos bons amigos até hoje. O diretor do projeto era o alemão Hans Peter Schöner, simpático e bonachão, possuidor de altíssima qualidade profissional e humana. Trabalhou, por muitos anos, em várias cidades do Peru e, quando se aposentou, retornou à sua cidade natal na Alemanha.

O Peru é um destino turístico de grande atratividade, dada a sua diversidade geográfica, riqueza arqueológica, tradições e folclore. É muito mais que Machu Picchu. Há praias paradisíacas ao longo dos seus aproximadamente 3 mil quilômetros de costa, impressionantes paisagens nas alturas dos Andes e selva virgem no coração da Amazônia, onde os mais diversos parques nacionais, reservas nacionais e santuários da vida silvestre se convertem em lugares ideais para a prática do turismo ecológico e de aventura (COSTA, G. A. de M. Turismo e Epidemiologia no Peru, Artigo 83179 USP, 2013).

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Paisagens do Peru PxB + Flck
Foi na pequena comunidade de pescadores de Cabo Blanco, Tumbes, situada a 1.145 km ao norte de Lima, onde Ernest Hemingway viveu por um certo tempo no verão de 1956. Este local era então uma das melhores áreas de pesca esportiva do mundo. Hemingway tinha a missão de pescar um gigantesco merlim para o filme que a Warner Brothers produziu sobre seu mítico relato nessa localidade em 1958. Chegou a pescar em Cabo Blanco quatro marlins, um deles pesando cerca de 300 quilos.

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Baía de ChimboteGMaps
Chimbote é uma cidade situada na costa central norte do Peru, capital da Nova Província de Santa, no extremo noroeste da Região de Ancash. Fica nas orelhas do Oceano Pacífico na baía El Ferrol, onde desemboca o Rio Lacramarca. A cidade está localizada na costa da Baía de Chimbote, a 130 km ao sul de Trujillo e a 420 km ao norte de Lima. É conhecida por sua atividade portuária, além de ser importante sede para a indústria pesqueira e siderúrgica do país. Possui mais de 30 fábricas de extração de farinha de peixe e é o maior porto pesqueiro do Peru. Em meados do século XX, o porto de Chimbote chegou a ser o porto de pesca com a maior produção mundial. No sul da cidade existem várias praias, entre elas as de Vesique, Los Chimús, Caleta Colorada, El Dorado e Tortugas. Em um domingo de folga, nesse período de trabalho, estive com alguns colegas de consultoria visitando a praia de Tortugas.

Marquei minha passagem aérea para o domingo, 16 de janeiro, véspera do início do trabalho em Chimbote. Viajei só, num avião pequeno, semelhante a nossos pequenos planadores (teco-teco), onde só cabiam umas seis pessoas. Havia recebido orientação dos colegas para hospedar-me no melhor hotel da cidade, Hotel Presidente. Após o estresse da viagem, quando o avião aterrissou,
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SiderPeru, ChimboteGMaps
por volta das nove horas da manhã, olhei ao redor e pensei que era um sonho, vi que havia um enorme cogumelo vermelho no ar, tipo a imagem que temos da explosão provocada por bomba atômica. Era “apenas” a poluição do ar devido à produção de aço da Siderúrgica SiderPeru, a maior do país. Pensei: Não vou aguentar uma semana aqui! Comecei a sentir um mau cheiro horrível e contínuo que — descobri depois — era originário das inúmeras fábricas que industrializavam farinha de peixe. A farinha era fabricada de qualquer tipo de pescado, mesmo os de primeira classe. O que interessava às firmas estrangeiras era somente o lucro. Não compensava para eles a exportação do peixe. O lucro com a farinha era muito maior. Que desperdício, autorizado por nossos governantes latinos!

Fiquei filosofando comigo mesmo, arrependido: Para que fui aceitar essa consultoria? Para que tanta aventura? Imaginei-me o próprio prisioneiro Henri Charrière, autor de Papillon, ao desembarcar na Ilha do Diabo, sinistro complexo de presídios mantidos então pela França na Guiana Francesa. O livro, lançado em 1969, ficaria famoso mundialmente. Conta a fuga espetacular do principal personagem daquela prisão,
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ocorrida em 1935, havendo escapado para a Venezuela, onde terminou seus últimos dias de vida. Versões mais atuais consideram que o verdadeiro autor de Papillon teria sido outro fugitivo, René Belbenoît, intelectual que falava quatro línguas e chegou a liderar um grupo de presos, entre eles Henri Charrière, o suposto autor desse livro. Papillon chegou às telas dos cinemas em 1971 em uma superprodução de Hollywood, com Steve McQueen no papel principal. Foi um dos melhores livros que já li. Ao terminar de lê-lo fiquei triste. A história era tão boa que não queria que acabasse. Afinal, eu não era Papillon, o prisioneiro julgado por assassinato. Estava naquele trabalho por livre e espontânea vontade. Possuía recursos suficientes para devolver as passagens aéreas e todas as despesas envolvidas na minha viagem e assim poder regressar imediatamente a João Pessoa.

Retirei a minha mala, tomei um táxi e fui para o hotel. Embora o Hotel Presidente fosse o melhor da cidade, achei tanto o ambiente externo quanto o interno, muito sujos, aliás, imundos. Quando subi ao quarto e abri a janela, verifiquei que bem em frente, a alguns metros de distância, estava localizado o lixão da cidade que exalava um mau cheiro terrível, além daquele que estava me habituando a sentir, proveniente da fabricação de farinha de peixe.
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Chimbote, PeruGMaps
A vista, horrível. A mobília do quarto, composta de um bureau antigo, estragado, um guarda-roupa velho e uma cama de solteiro. O banheiro, fora do quarto. Estava muito cansado e estressado. Deitei-me com a própria roupa de viagem, por volta das onze horas da manhã, sem a menor vontade de abrir a mala. Caí no sono para despertar às 17 horas. A esta altura já tinha muita fome. Fui tomar banho e encontrei uma enorme barata no box do banheiro, o que fez com que, após esmagá-la, não tomasse um banho lá muito agradável. Após trocar de roupa, pedi informações no hotel e fui procurar um restaurante para jantar.

No período em que viajei para Chimbote, a epidemia de cólera já havia invadido a América do Sul, iniciada que fora no Peru ao iniciar-se o ano de 1991. Depois da interrupção dos ciclos de cólera na Europa no começo do século XIX, a cólera retornou, desta vez, às Américas, em forma de pandemia. E como? A porta de entrada foi o piscoso porto de Chimbote. Os navios e barcos quando aportavam descarregavam o acumulado dos seus esgotos nessas águas, que o mar cuidava de levar diretamente para a beira-mar. Diariamente morriam, só naquela cidade, 15 a 20 pessoas, vítimas dessa terrível enfermidade contraída, assim noticiava o jornal local.

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Baía de Chimbote, PeruGMaps
O micróbio causador da cólera é o vibrião colérico, ou seja, a bactéria Vibrio cholerae, descoberta em 1884 pelo cientista alemão Robert Koch, considerado um dos pais da microbiologia. Aproximadamente uma em cada 20 pessoas infectadas sofre de doença grave, caracterizada por diarreia aquosa abundante, vômitos e câimbras nas pernas. Nessas pessoas, a perda rápida dos líquidos do corpo leva à desidratação e à prostração. Se não houver tratamento, a morte pode acontecer em questão de menos de seis horas. Sua primeira aparição no Brasil ocorreu na década de 1820, no Rio de Janeiro, então capital do país. Em 1855 mais de 200 mil pessoas morreram somente nessa cidade. No final do século XIX a doença foi erradicada do Brasil graças às melhorias do saneamento básico nas principais cidades do país. A cólera retornaria depois de quase cem anos. Interessante notar que, desta feita, a cólera invadiu todos os países da América do Sul,
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Chimbote, PeruGMaps
com exclusão do Paraguai. Qual o motivo, considerando-se que esse país é ainda mais subdesenvolvido que a maioria dos países sul-americanos? Razão disso foi a abundante disponibilidade de água no único país que preserva a língua tupi-guarani nas Américas, o que veio a facilitar as condições de limpeza e asseio da população durante a pandemia.

Continuei na minha peregrinação em busca de um restaurante razoável. Cada qual, mais sujo que o anterior.  Terminei entrando num deles e, a esta altura já morrendo de fome, pedi um bife puro com arroz e uma cerveja. Na esperança de não encontrar nenhum micróbio que me fizesse adoecer. No regresso, descobri um pequeno supermercado onde comprei água mineral com gás e um pouco de iogurte. Já no hotel, antes de tentar abrir a porta do meu quarto, havia outra enorme barata, morta há pouco tempo, provavelmente por algum hóspede meu vizinho. Tive coragem de colocar minhas roupas e livros no guarda-roupa e fui dormir, preocupado com meu destino. Com essa acanhada descrição do meu primeiro dia em Chimbote, já dá para se ter ideia do que me esperava na cidade.
Aguardem a continuação do artigo: Agruras de um consultor na terra dos Incas (Parte 2): Início da consultoria no Peru.

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  1. Anônimo3/3/24 07:18

    Saboroso relato, Sérgio. Parabéns. Francisco Gil Messias.

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  2. Anônimo3/3/24 08:13

    Impressionante!
    Estive no Peru 17 anos antes, quando ainda era estudante.
    Era realmente muito atrasado. Mas, jovens irresponsáveis, não estávamos nem aí.
    Muito bom, Sérgio!
    Vou passar a semana roendo as unhas, esperando o próximo capítulo da série!

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  3. Anônimo3/3/24 08:14

    José Mário Espínola

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  4. Anônimo3/3/24 12:56

    Parabéns, Sérgio. Um rico e instigante relato ! EUDES ROCHA

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  5. Anônimo3/3/24 14:07

    Que aventura, Sérgio. Esperando a conclusão ! Abraços!!

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  6. Anônimo7/3/24 19:02

    Uma crônica com um final de suspense que nos deixa com ansiedade para conhecer o seu deslinde. Conseguirá o nosso intrépido Sergio Rolim sobreviver ao escatológico Chimbote? É o que saberemos na crônica seguinte. E que seja logo, que venga ! Parabéns, Sérgio!

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