Já escrevi sobre o hiperbibasmo, um dos artifícios frequentes na construção da poesia de Augusto dos Anjos, que consiste no deslocamento do acento tônico da palavra, ora transformando um proparoxítono em paroxítono (diástole); ora, um paroxítono em proparoxítono (sístole). Darei os dois exemplos aqui, apenas para fundamentar o meu argumento de que esse procedimento não tem nada de novo.
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Camões já o utilizava, Castro Alves também, mas ele vem sendo usado desde a antiguidade clássica, tendo mesmo começado com Homero. Vamos aos 2 exemplos em Augusto dos Anjos.
No poema Insônia (estrofe 14, verso 53), Augusto dos Anjos utiliza “periféria”, como ocorre no grego (περιφέρεια), embora a forma que chegou para nós tenha sido através do latim, “periferia” (peripherīa). Se o poeta tivesse utilizado a forma corrente, em lugar da sístole, não teria conseguido o metro decassílabo desejado:
Com o o/lhar/ a/ VER/de/ pe/ri/FÉ/ria a/BAR/co
(verso original: decassílabo sáfico)
Com o o/lhar/ a/ ver/de/ pe/ri/fe/ri/a a/bar/co
(verso com a forma corrente: 11 sílabas)
A situação é semelhante em Agonia de um Filósofo (verso 9), em que o poeta usa “areopago”, em lugar de “areópago”, forma corrente na nossa língua, derivada do latim areopăgus. Não foi à toa que o poeta usou a primeira forma. O latim juntou duas palavras separadas no grego, áreios e págos (Ἄρειος πάγος), com o significado de colina de Ares. Augusto preferiu, portanto, a forma grega, não a latina. Se assim não o fizesse, utilizando-se da diástole, o verso decassílabo não se efetuaria:
No hie/rá/ti/co a/reo/PA/go he/te/ro/gê/neo
(verso no original: Decassílabo heroico)
No hie/rá/ti/co a/re/ó/pa/go he/te/ro/gê/neo
(verso com a forma corrente: 11 sílabas)
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Não se trata, no entanto, de um procedimento errático do poeta. Na nossa língua, entre outros, Camões utilizou-se desse recurso, em Os Lusíadas (Canto III, estrofe 56, verso 4), por exemplo, quando usa Naiades, em lugar de Náiades, provocando uma sístole (Nái/a/des/ > Nai/a/des), de modo a obter o ritmo do decassílabo heroico, com cesura obrigatória na sexta sílaba:
Sin/tra,/ on/de as/ Nai/A/des,/ es/con/di/das
(verso escandido com a mudança de acento tônico: decassílabo heroico)
Sin/tra,/ on/de as/ Nái/a/des,/ es/con/di/das
(verso escandido, preservando o acento tônico: dez sílabas, fora do ritmo)
Bem antes de Camões, Homero, na Ilíada (Canto V, verso 31), utilizou o nome do deus da guerra, Ares, duas vezes com duração diferente, igualmente por questões métricas, no mesmo verso hexâmetro. Na primeira vez, o alfa é longo, por ocupar a primeira sílaba do hexâmetro; na segunda vez, o alfa permanece breve, o que é de sua natureza, para terminar de compor o primeiro pé, um dáctilo, formado de três sílabas – uma longa, seguida de duas breves, conforme a escansão abaixo (escansão e tradução nossas):
Ἆρες, Ἄρες βρολοιγέ, μιαιφόνε, τειχεσιπλῆτα,
Ἆρες, Ἄ/ρες βρο/λοιγέ, μι/αιφόνε, /τειχεσι/πλῆτα,
(Ares, Ares, funesto aos mortais, assassino, destruidor de muralhas,)
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Nada se compara, no entanto, ao que o poeta latino Ovídio (43 a. C. – 17/18 d. C.) fez. Tendo sido desterrado por César Augusto para a cidade de Tomi, hoje Constança, na Romênia, à beira do Mar Negro (o Ponto), o poeta das Metamorfoses escreveu ali dois livros, Epistulae ex Ponto (Cartas do Ponto) e Tristia (Fatos tristes ou infelizes). Nas epístolas, Ovídio nos dá notícias de muitos amigos a quem escreve, tendo, inclusive, declinado o nome de muitos poetas seus coevos, cuja existência só chegou até a atualidade graças às suas cartas.
Em uma das cartas (Livro V, Epístola 12), Ovídio se desculpa com um dos amigos, Tuticanus, pelo fato de nunca haver citado o seu nome nos seus poemas. Segue-se, então, uma discussão sobre métrica e sobre ritmo, da qual se extrai a explicação
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para a ausência do nome do amigo na dita carta: Ovídio foi um poeta de uma obra extensa, mas que se utilizou apenas de dois metros, o hexâmetro, exclusivo das Metamorfoses, e o dísticoelegíaco, em todas as demais publicações.
O hexâmetro, como o próprio nome diz, é um verso de seis medidas ou seis pés. A poesia grega, assim como a poesia latina, era escandida a partir da concepção de junção de sílabas formando um pé, diferentemente da poesia portuguesa, além da francesa, espanhola e italiana, que adota uma escansão a partir das sílabas individuais do verso. Assim, o hexâmetro, muito utilizado na épica, mas não exclusivo desse gênero, era constituído de seis pés, cuja base era o quinto pé, que deveria ser um dáctilo (3 sílabas, sendo uma longa e duas breves). O sexto pé era sempre troqueu (duas sílabas, uma longa e uma breve) ou espondeu (duas sílabas, ambas longas). Os demais pés, do 1 ao 4, poderiam ser, indiferentemente, dáctilos ou espondeus, nas mais diversas posições.
O pentâmetro tinha 5 medidas ou cinco pés, também formado por dáctilos e espondeus. A junção de um hexâmetro e um pentâmetro forma um dístico elegíaco (estrofe de dois versos, muito utilizada na poesia lírica e no epigrama). Trata-se de uma estrofe que vem do momento áureo do período alexandrino da literatura grega (século III a. C.), assimilada pelos poetas latinos. Ovídio, na Elegia I (Livro I dos Amores),
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nos dá uma concepção poética de sua criação: para que o dístico elegíaco não ficasse reduzido a dois hexâmetros, Cupido roubou um pé ao segundo hexâmetro, criando o pentâmetro, obrigando a uma mudança de ritmo, com a síncope produzida. Ou seja, uma genial e sedutora discussão poética sobre o fazer poético e da passagem do épico para o lírico.
Sem poder colocar o nome do amigo Tuticanus no poema, na sua forma original, Ovídio o faz alterando a prosódia do seu nome, de modo a explicar a sua impossibilidade de constar em uma das cartas, todas escritas em dísticos elegíacos. O nome do amigo de Ovídio, Tūtĭcānŭs (lê-se Tuticánus, paroxítono), é formado por dois pés troqueus – Tūtĭ e cānŭs –, de acordo com a língua latina, que se utilizava de fonemas vocálicos longos e breves, de modo a dar a duração da sílaba, sem qualquer relação com a tonicidade da palavra. O entrave está no fato de que nem o hexâmetro, primeiro verso do dístico elegíaco, nem o pentâmetro, o segundo verso, suportam dois troqueus seguidos. Não há, pois, como colocar o nome do amigo na epístola...
Apresentaremos, a seguir, os 16 versos iniciais da Epístola 12, que tem 50 versos, em latim, para os interessados na língua, e uma tradução operacional nossa, a partir da qual teceremos comentários mais detalhados.
Tradução proposta:
A razão por que não sejas posto, amigo, em nossos livrinhos,
conclui-se que pela condição de teu nome;
ou antes eu não julgaria outro digno desta honra,
se o nosso canto é, de algum modo, honra para alguns.
A lei do pé e a fortuna do nome obstam ao ofício5
e via alguma há por que venhas aos meus ritmos.
Com efeito, assim, envergonha-me cindir teu nome para versos gêmeos,
para que o primeiro finalize, com uma parte, e, com outra, o menor comece,
e que eu me envergonhe, se na parte em que a sílaba se demora,
mais brevemente eu te chame e te nomeie Tutícanus.10
E podes chegar, pelo costume, com o nome de Tŭticano para o verso,
de modo que se faça a primeira sílaba, de longa, breve,
ou que se conduza aquela que agora sai mais breve,
e seja, a demora tendo sido alongada, longa a segunda.
Se eu tiver ousado corromper teu nome com estes vícios,15
que eu seja, merecidamente, ridicularizado e me seja negado ter coração.
O poema apresenta uma primeira parte (versos 1-6), em que Ovídio se dirige ao amigo, para explicar o porquê de não colocar o seu nome nos seus poemas: a lei da métrica e a fortuna do seu nome dificultam o seu ofício de poeta, que se utiliza do dístico elegíaco. O fato de a fortuna dar ao amigo um nome composto tecnicamente por dois troqueus, Tūtĭcānŭs (Tūtĭ/cānŭs), inviabiliza, pelas leis da métrica, a sua utilização no hexâmetro e no pentâmetro. As leis da métrica só admitem a existência, em um mesmo verso hexâmetro ou pentâmetro, de um troqueu e, assim mesmo, no final do hexâmetro, compondo o sexto pé, ou sincopado, no pentâmetro, com a metade aparecendo depois do segundo pé e a outra metade depois do quarto pé, com as duas metades compondo o quinto pé, conforme se pode ver abaixo:
A segunda parte do poema (versos 7-16) apresenta uma série de possibilidades, todas viciosas, que serão explicadas uma a uma. A primeira delas é a cisão do nome (versos 7-8). O poeta começa a discutir as possibilidades para uso do nome, em seu poema. É impossível inseri-lo no poema, da forma como ele deve ser lido. As leis da métrica, conforme já vimos, não o permitem. Uma possibilidade seria a separação do nome do amigo em duas metades, para se utilizar uma no final do hexâmetro e a outra no início do pentâmetro. Assim, Tūtĭcānŭs, se tornaria Tūtĭ/cānŭs. Tūtĭ- seria o troqueu a fechar o sexto pé do hexâmetro, enquanto -cānŭs começaria o primeiro pé do pentâmetro, podendo ser um dáctilo ou um espondeu, a depender da palavra que viesse posteriormente. Essa cisão, contudo,
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constituiria uma vergonha para o poeta, pois ele estaria mutilando o nome do amigo, ao cindi-lo em dois segmentos. A fortuna o dotou com o nome Tūtĭcānŭs e, se o nome é profecia – nomen omen –, é preciso respeitar as decisões da fortuna.
A segunda possibilidade é a abreviação da penúltima sílaba (versos 9-10), de Tūtĭcānŭs para Tūtĭcănŭs, com nome no acusativo, Tūtĭcānŭm, a que se anexaria a enclítica -que (uma das formas da conjunção “e”), formando Tūtĭcănūmquĕ. Pareceria perfeito, porque haveria a composição de um dáctilo, Tūtĭcă-, com um troqueu, -nūmquĕ, compondo os dois pés finais do hexâmetro, Tūtĭcă/nūmquĕ, não fora a vergonha da mutilação da prosódia do nome do amigo.
O poeta sugere, como terceira possibilidade, a abreviação da primeira sílaba (versos 11-12). No original está Tŭtĭcānī, por ser palavra da segunda declinação e estar no genitivo singular, ocorrendo um alongamento da última sílaba. Neste caso, teríamos um falso iambo, Tŭtĭ-, que, a depender da palavra anterior, se transformaria no dáctilo, enquanto a segunda parte do nome, -cānī, seria um espondeu, cabendo perfeitamente no dístico elegíaco.
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Nos versos 13 e 14, Ovídio propõe nova mudança da prosódia do nome, de modo a formar dois espondeus, Tūtīcānī, cabendo no hexâmetro e no pentâmetro. A demora na primeira sílaba ajudaria, bem conduzida pelo poeta, a alongar a segunda sílaba. A corrupção do nome do amigo, para poder caber no poema, configura, aos olhos do poeta, uma prática ímpia, que não só contraria a lei da métrica, mas o exporia ao ridículo (versos 15-16). Do mesmo modo, corromper o nome que a fortuna atribuiu ao amigo é uma clara demonstração de o poeta não ter coração, tendo em vista que a corrupção flagrante de seu nome também o submete ao ridículo.
De modo a compensar o amigo, o poeta termina por reafirmar o seu amor fraterno, de criança, ao amigo, pagando com juros a demora por não ter colocado seu nome em seus livrinhos (versos 17-22). O interessante é que,
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sem dizer o nome do amigo, apenas fazendo alusões às corruptelas que o nome poderia ter, o poeta nos ajuda a compô-lo, jogando habilmente com o nome do amigo, mostrando o seu conhecimento de métrica e de ritmo do verso. Trata-se de uma lição de métrica, em um poema em que se celebra a amizade.
Ao nomear o amigo pela primeira vez, utilizando o acusativo adicionado da enclítica -que, Tūtĭcănūmque, o poeta nos indica que o nome do amigo se enquadra na segunda declinação. Desse modo, sabemos que, pelas regras da métrica, o nome é Tūtĭcānŭs. Ao longo do jogo, procurando uma solução plausível para colocar o nome do amigo no seu poema, falando da possibilidade de abreviação da primeira sílaba, nos versos 11-12, e da possibilidade de alongamento da segunda, nos versos 13-14, ele nos induz a não errar o nome, confirmando ser Tūtĭcānŭs.
Este jogo hábil com a métrica revela um recurso retórico de dizer sem querer dizer ou dizer anunciando que não dirá. É o que se revela nos versos de 17 a 19, com o poeta pagando em juros o seu presente e cantando o amigo por qualquer nome. Por esta elegia, Ovídio demonstra a sua habilidade como poeta, que sabe manejar o verso com destreza, sem que as leis da métrica se tornem um empecilho para a realização de seu verso. Uma lição para os pósteros.