Victor Hugo é um dos maiores escritores da humanidade. Além de romancista, poeta, dramaturgo, crítico, homem político – fazendo Polític...

O que se diz dos homens

victor hugo miseraveis
Victor Hugo é um dos maiores escritores da humanidade. Além de romancista, poeta, dramaturgo, crítico, homem político – fazendo Política, com “P” maiúsculo – ele era um pensador, construindo, ao longo de sua obra, frases que são verdadeiras sentenças, incluídas, sem a menor hesitação, na categoria dos aforismos.

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A partir da constatação da força dos aforismos de Victor Hugo, tomamos a decisão de iniciar uma série de publicações, com frases retiradas de Os Miseráveis (Oeuvres complètes, Roman II, notices e notes de Guy et Annette Rosa, Paris, Robert Laffont, 2008), romance iniciado em 1845 e deixado de lado em 1848, por causa das questões políticas, sendo retomado, a partir de 1860, no exílio, e publicado em 1862. O método será a apresentação da frase original, acompanhada da sua tradução, de alguma contextualização e da referência, em caso de alguém querer conferir. Ressalto que as referências serão minuciosas, tendo em vista o processo de construção dos romances de Victor Hugo, que os divide em partes; cada parte, em livros; cada livro em capítulos.

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Ilustrações de Gustave Brion para o livro Os Miseráveis, de Victor Hugo ▪ editores: J. Hetzel et A. Lacroix (Paris), 1862 ▪ Fonte: Biblioteca Nacional da França
Para que se tenha uma ideia da força das máximas de Victor Hugo, a boutade de Millôr Fernandes, em relação ao investimento na Educação – “Se vocês estão achando caro o preço da Educação, esperem só para ver quanto custa a ignorância – é uma reverberação do discurso de Hugo, em novembro de 1848, na tribuna da Assembleia Nacional Constituinte, denunciando a redução no orçamento governamental, que ameaçava as letras, as artes e as ciências (Du péril de l’ignorance, Paris, Les Éditions du Sonneur, 2010, p. 22, tradução nossa):

Je viens de vous montrer à quel point l’économie serait petite; je vais vous montrer maintenant combien le ravage serait grand.
Eu acabo de vos mostrar a que ponto a economia seria pequena; eu vos mostrarei agora o quanto a ruína seria grande.

Falando em defesa da Educação, Victor Hugo vê o grande perigo que é a ignorância para a sociedade, por ser a engendradora da miséria. “Qual é o grande perigo da situação atual para a França?”,
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Jean ValjeanB. Brion, 1862
pergunta ele da tribuna, aos seus pares constituintes. Ele mesmo responde, afirmando ser a ignorância, ainda mais que a miséria, o perigo maior (“Quel est le grand péril de la situation actuelle? L’ignorance. L’ignorance encore plus que la misère”, id. ibid., p. 26-27).

Essa atitude de Hugo com relação à educação reverbera com muita força, na realidade e na ficção. Jean Valjean, depois de fazer fortuna, com o nome de Père Madeleine, e levar a cidade de Montreuil-sur-Mer a um progresso jamais visto, melhorando a vida de todos que estão a sua volta, sobretudo os operários de sua fábrica, reafirma com propriedade o que dissera Hugo, na tribuna, como deputado constituinte (Os Miseráveis, Primeira Parte, Fantine, Livro 5, A Descida, Capítulo II, “Madeleine”, p. 129, tradução nossa):

Les deux premiers fonctionnaires de l’état, c’est la nourrice et le maître d’école.
Os dois primeiros funcionários do estado são a ama-de-leite e o professor.

Essa compreensão de Hugo/Madeleine mostra a necessidade de as palavras acompanharem a ação. Não basta dizer que o cuidado com as crianças é importante, desde a fase de aleitamento até a escola. É preciso que isto se torne ação efetiva, pela importância que tem em si mesma,
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Pére Madeleine (Jean Valjean) B. Brion, 1862
para a sociedade, não por razões outras ou para benefícios individuais. Victor Hugo luta por mais verbas para a educação, para que se efetuem as mudanças necessárias; Jean Valjean/Madeleine tem essa verba conquistada com o suor de seu trabalho. Em lugar de ficar só no palavreado, Madeleine parte para a ação, criando mais dez leitos para o hospital local, construindo mais duas escolas e pagando de seu bolso ao professor um salário duas vezes maior que o oficial. Cuidar da educação significa, compreende ele, é cuidar também dos que fazem a educação acontecer diariamente, na escola: os professores. A ação vale mais do que a palavra e esta deve sempre acompanhar aquela. As obras, enfim, devem ser semelhantes às palavras, como também afirma Hugo.

Passemos, pois, à frase abaixo, que se ajusta bem aos dias atuais, retirada da Primeira Parte, Fantine, Livro Primeiro, cujo título é Un Juste (Um Justo), Capítulo I, intitulado “M. Myriel” (“Senhor Myriel”, p. 5):

Vrai ou faux, ce qu’on dit des hommes tient souvent autant de place dans leur vie et surtout dans leur destinée que ce qu’ils font.
Verdadeiro ou falso, o que se diz dos homens tem frequentemente um lugar na vida deles e, sobretudo, no seu destino, tanto quanto o que eles fazem.)

A universalidade da frase Victor Hugo surge na medida em que o que se diz sobre as pessoas nunca é totalmente gratuito ou aleatório, mesmo quando se trata de um estereótipo, o chamado “modelo duro”,
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FantineB. Brion, 1862
como informa a sua etimologia, ele tem sua razão de ser. Contribui para isso o fato de que nem sempre as palavras correspondem às ações. Se o que dizemos não corresponde ao que fazemos ou vice-versa, a falsidade ali reside. Se há uma condição homóloga entre o que dizemos e o que fazemos, há uma verdade que ali se encontra.

Essa frase sobre a importância do que se diz dos homens repercute no Capítulo IV desse Livro Primeiro, Fantine – “Les oeuvres semblables aux paroles” (“As obras semelhantes às palavras”, p. 12-17), importante para a definição do caráter do Monsenhor Myriel, o bispo de Digne, para quem a justiça, não a santidade, é o objetivo a ser alcançado pelos homens (Capítulo IV, p. 14):

“Être un saint, c’est l’exception; être un juste, c’est la règle. Errez, défaillez, péchez, mais soyez des justes.”
Ser um santo é a exceção; ser um justo é a regra. Errem, faltem-lhe as forças, pequem, mas sejam justos.

Como somos todos falíveis, errar, fraquejar, pecar são ações que praticamos diariamente, às vezes de modo voluntário, às vezes de modo involuntário. De qualquer sorte, se o erro, a fraqueza e o pecado nos levam a uma aprendizagem e à admissão
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Monseigneur BienvenuB. Brion, 1862
dos nossos erros, está aberto o caminho para sermos justos. É o reconhecimento do erro e a aceitação de suas consequências que produzem a justiça. Entre a santidade, quase inatingível, e a prática da justiça, ao alcance de todos, há uma grande estrada a ser percorrida.

A reflexão do Monseigneur Bienvenu tem exatamente a intenção de mostrar o que o ser humano pode fazer. É com as pequenas atitudes diuturnas que poderemos nos modificar e, talvez, influenciar a modificação de nosso entorno com o exemplo, que vem diretamente da responsabilidade de nossos atos, admitindo a nossa falibilidade, mas procurando o caminho da autocorreção.

Os aforismos hugoanos, portanto, ajudam a refletir e estabelecem uma delimitação – este é o sentido grego do termo aforismos (ἀφορισμός) –, que nos proporciona uma compreensão melhor do que somos e do que poderíamos ser.

Bom proveito a todos.

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  1. Vejam só a atualidade de Victor Hugo! Seu texto, Milton, revela como os nossos governos historicamente têm desprezado a educação e os professores. E esse seu projeto de colher e reunir as sentenças/aforismos do escritor é de primeira ordem. Siga em frente e teremos a seguir um valioso repositório de sabedoria. Parabéns. Francisco Gil Messias.

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  2. Hélder Moura19/7/25 09:06

    Para além da interpretação magistral do texto de Hugo, a percepção da fabilidade do humano, que fraqueja, que esconde seus pecadilhos e que, em última instância, não poderia ser diferente, posto que humano. Belo texto, mestre Milton

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