Marília Arnaud vem marcando cada vez maior presença na literatura brasileira contemporânea com seus belos contos. Ganhou o Prêmio Novos Autores Paraibanos – da UFPB – em 1997, com Os Campos Noturnos do Coração, colecionou elogios com O Livro dos Afetos, editado pela 7Letras em 2005, e participou de coletâneas nacionais
Marília Arnaud, escritora, autora do livro O Pássaro Secreto, vencedor do Prêmio Kindle de Literatura, em 2021. ▪ Fonte: Instagram
importantíssimas, já em 2006, como a de Contos Cruéis, da Geração Editorial, e 30 Mulheres que Estão Fazendo a Nova Literatura Brasileira, da Editora Record.
Paula Barcellos, em artigo no Jornal do Brasil, destacou a presença de nossa autora dentro do volume lançado pela Garamond, de estórias curtas criadas pelos maiores nomes do ramo no país, numa grande homenagem de Rinaldo de Fernandes aos 60 anos do Sagarana, de Guimarães Rosa.
Li a narrativa inspirada em Sarapalha e constatei que faz jus ao nome — ou renome — que Marília Arnaud vem conquistando na Paraíba e fora dela. Li O Livro dos Afetos, idem.
Quero, porém, falar sobre Os Campos Noturnos do Coração.
Revi, numa dessas noites, o último filme de John Huston — Os Vivos e os Mortos, de 1987 — e, mais uma vez, fui colhido pela narrativa emocionada e comovente da personagem de Anjelica Huston ao marido, despertada por uma canção ouvida à meia-luz, na saída de uma festa tradicional da família irlandesa, do Dia de Reis.
Na manhã seguinte, retomei meu velho volume de Dublinenses (Dubliners), de Joyce, reli o conto Os Mortos (The Dead, como no título original de sua versão cinematográfica) e vi o trabalho de Huston sob nova luz. Revi, em seguida, a cena que se passa em Dublin, 1904. No filme, a bela melancolia nostálgica do texto de Joyce roteirizado por Tony, filho do diretor (John Huston), com sua terna lembrança dos mortos.
Os Campos Noturnos do Coração surge uma década depois de Os Vivos e os Mortos, oitenta e cinco anos após Dubliners. Em comum com o filme e com o conto final do livro, o refinamento ético e estético, a mesma requintada temática, a mesma poética e tristíssima visão do mundo, que Marília Arnaud estende por todas as dez peças de sua edição. E o livro me remete, também, a Mrs. Dalloway, de Virginia Woolf, aos filmes de James Ivory e Luchino Visconti e à música de Scriabin. Há um verniz, em seu acabamento, que considero incomum.
Exemplo? Está bem:
“Prédios, letreiros, pessoas. Calor. Cor. Um vermelho de vestido esvoaça lá, no ponto de ônibus. O azul e branco dos colegiais assaltam as calçadas. O colorido anônimo dos operários empurra a manhã para dentro de mais um dia.”
GD'Art
Gosto muito de livros de Arte. Muito. Não só pelo prazer infantil de ver figuras, mas pelo texto primoroso dos grandes historiadores e críticos como Sheldon Cheney, Élie Faure, Giulio Carlo Argan, produzidos pelo eficiente esforço de traduzir em palavras a riqueza cromática que os seduz – e a mim também. Os contos de Os Campos Noturnos do Coração têm a mesma suntuosa beleza obtida por esses autores. O trecho a seguir — sobre um grupo de telas espalhadas num quarto — vem a propósito:
“Ponteiros e números dançavam num mostrador de relógio que não mostrava o tempo. Correntes sangravam sobre lençóis brancos. E túneis, muitos túneis.”
GD'Art
Isto é Bergman. Belo e amargurado como em Sonata de Outono, angustiante e doloroso como em Gritos e Sussurros, rico de imagens como em Morangos Silvestres. Os Campos Noturnos do Coração me surpreende. Como O Livro dos Afetos (7Letras, 2005) – também de Marília Arnaud – é, pela forma e conteúdo, uma obra que enobrece a nossa literatura.