Jean-Paul Sartre, no livro As Palavras , de teor autobiográfico, recorda que começou sua vida no meio dos livros e esperava terminar s...

Sartre e as leituras

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Jean-Paul Sartre, no livro As Palavras, de teor autobiográfico, recorda que começou sua vida no meio dos livros e esperava terminar seus dias da mesma forma. O avô era encadernador, e o menino sentia orgulho de ser neto de um artesão especializado na confecção de “objetos sagrados”. Sim, para Sartre, o livro era um objeto sagrado e exigia muito respeito.

Antes de aprender a ler, deitava-se no chão, pegava os livros e começava a cerimônia de apropriação: cheirava-os, apalpava-os, mas não tinha a sensação de possuí-los; não conseguia decifrar o que estava escrito. Recorreu à mãe, e as histórias contadas por sua genitora ganhavam vida; parecia que o livro falava.

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Há uma passagem bem poética nessa autobiografia que rememora parte de sua infância, e o escritor se expressa de maneira lírica quando diz: “Nunca esgaravatei a terra nem farejei ninhos, não herborizei nem joguei pedras nos passarinhos. Mas os livros foram meus passarinhos e meus ninhos, meus animais domésticos, meu estábulo e meu campo; a biblioteca era o mundo colhido num espelho; tinha a sua espessura infinita, a sua variedade e a sua imprevisibilidade” (1984, p. 37).

Quando aprendeu a ler, ficou louco de alegria e começou a vagabundear pela biblioteca do avô, a assaltar a sabedoria humana. Foi deitado sobre o tapete, com um livro nas mãos, que descobriu Fontenelle,
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Aristófanes, Rabelais. Sentia-se Pérouse, Magalhães, Vasco da Gama; descobria estranhos indígenas.

A biblioteca passou a ser um templo, e Sartre se considerava neto de um sacerdote. O avô era um humanista, mas tinha pouca estima pelos romances. Alguns anos mais tarde, viu o avô deleitar-se com um extrato de Madame Bovary, selecionado por Mironneau para as Lectures, talvez esquecido de que Flaubert completo esperava-o havia vinte anos.

Adolescente, ouviu quando alguém disse: “Este garoto tem sede de instrução; ele devora o Larousse”. Sozinho, descobriu que o dicionário continha resumos de peças e romances, e isso o deleitava. Prosseguia com observações sobre suas leituras; porém, teve um grande dissabor quando foi matriculado no Liceu Montaigne. O avô disse ao diretor que o único defeito que o neto tinha era ser adiantado demais para a idade. Foi matriculado no terceiro ano primário.

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No primeiro ditado, o avô foi chamado às pressas ao colégio e voltou enfurecido com os erros de ortografia cometidos pelo menino, e ouviu o que não gostaria de ouvir do diretor do colégio: o lugar do neto era no primeiro ano. Para Sartre, nada de grave; considerava-se uma criança prodígio, apenas não sabia ortografia. O avô convocou um professor parisiense para lhe dar aulas diariamente, e o fracasso inicial foi superado. Estava pronto para viver grandes aventuras literárias e escrever sem erros de ortografia.

Eu também tive meus dissabores no colégio. Ao transferir-me do Colégio Santa Terezinha (Caicó – RN) para o Colégio das Damas, em Campina Grande, fui me matricular na companhia de meu pai. Tinha oito anos e já sabia ler, o que foi confirmado por meu genitor. Falei para a diretora que ia fazer o segundo ano primário; ela resolveu aplicar um pequeno teste oral comigo e escolheu a tabuada de somar e a de multiplicar. Logo a aritmética, como chamávamos na época; eu era fraquíssima quando se tratava de números.

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Primeiro, perguntou-me a tabuada de somar; errei duas ou três somas. Na de multiplicar, o resultado foi pior. Reação da diretora: vai repetir o primeiro ano primário. Aleguei que lia muito bem, até folhetos de feira eu lia. Nada a fez demover. Pedi qualquer livro — uma coletânea de textos (uma antologia), um livro de histórias — para provar que sabia realmente ler. Inútil. Ela explicou que, além de saber ler, precisava saber fazer contas.

Meu pai era exímio nas contas e ficou um pouco decepcionado com o resultado do exame oral da filha. Repeti o primeiro ano primário, decorei a tabuada de somar e a de multiplicar, continuei sendo uma boa leitora pela vida afora.

Hoje me considero, como Sartre, uma pessoa apaixonada por livros. Acredito no futuro dos livros: sobreviverão mesmo diante das modernidades, e comungo com o pensamento de Umberto Eco — o livro poderá sofrer modificações, mas nunca chegará ao fim; poderá ser destruído por mentes insensatas, mas, como a fênix, renascerá das cinzas.

Conservo em meu apartamento duas pequenas bibliotecas, a do meu marido e a minha. Olho para as estantes cheias de livros e sinto que eles dialogam comigo, pedem-me para ser lidos. Lamento não atender a seus apelos; há muitos livros à espera da leitora. O tempo é curto para tantas leituras…

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