Na primeira parte de Os miseráveis ( Fantine , 08 livros, 70 capítulos), vemos as origens e os perfis do Monsenhor Myriel Bienvenu, Je...

Os miseráveis (Primeira parte – Fantine)

miseraveis victor hugo
Na primeira parte de Os miseráveis (Fantine, 08 livros, 70 capítulos), vemos as origens e os perfis do Monsenhor Myriel Bienvenu, Jean Valjean, Fantine e Javert, um primeiro esboço da personalidade do casal Thérnadier, além de uma breve aparição de Cosette. Basicamente, temos aí os personagens mais importantes para a tessitura da trama, aos quais serão acrescentados, posteriormente, Marius e Gavroche, ambos na terceira parte (Marius).

miseraveis victor hugo
Jean Valjean
miseraveis victor hugo
Fantine
miseraveis victor hugo
Bienvenu
miseraveis victor hugo
Javert

Realizando uma leitura rápida do título dos 8 livros que constituem a Primeira parteUn juste (Um justo), La chute (A queda), En l’année 1817 (No ano de 1817), Confier, c’est quelquefois livrer (Confiar é, algumas vezes, entregar), La descente (A descida), Javert (Javert), L’affaire Champmathieu (O caso Champmathieu) e Contre-coup (Contragolpe) –, constatamos a existência de um entrelaçamento a nos dar uma ideia de como se organiza estruturalmente esse primeiro momento, crucial para o desenrolar da narrativa (estamos utilizando a edição francesa Oeuvres completes dos romances de Hugo, volume II, preparada e anotada por Guy e Annette Rosa, editada em Paris, Robert Laffont, 2008).

miseraveis victor hugo
Os miseráveis (Primeira Parte), de Victor Hugo ▪ edição original (Lacroix, Verboeckhoven & Cie) ilustrada por Gustave Brion, 1862 ▪ Fonte: Gallica
O livro 1, Um justo (Un juste, 14 capítulos, p. 5-48), trata do perfil do bispo de Digne, Monsenhor Myriel Bienvenu, como um homem piedoso (“Esta alma humilde, amava, eis tudo”, I, 1, 14, p. 47) e estabelece uma forte vinculação com o livro seguinte, A queda (La chute, 13 capítulos, p. 49-92), destinado ao perfil de Jean Valjean, um ex-presidiário cheio de rancores e ressentimentos, que rouba quem o acolheu como hóspede, impelido pelo desejo de vingar-se da sociedade. A queda de Jean Valjean, conforme veremos, não é unilateral. Ele cai para levantar-se e, tendo como alavanca o perdão do bispo, fará uma caminhada, sem volta, em direção à justiça e à caridade.

O livro 3, No ano de 1817 (En l’année 1817, 9 capítulos, p. 93-115), abre com um capítulo, “O ano de 1817” (“L’anné 1817”, p. 92-97), que parece desvinculado da narrativa, mas só parece. Ele é necessário, por fazer parte de uma recorrência no romance, que busca situar o contexto político, histórico e geográfico em que acontece a narrativa. O ano de 1817 é o ano 3 da segunda restauração dos Bourbon, com Luís XVIII alçado ao poder, após a derrota de Napoleão em Waterloo, em 1815, e a sua prisão, na ilha de Santa Helena (I, 3, 1, p. 97):

“Não existem pequenos fatos na humanidade, nem pequenas folhas na vegetação – são úteis. É da fisionomia dos anos que se compõe a figura dos séculos.”
miseraveis victor hugo
Brion, 1862
O capítulo nos mostra não só a efervescência cultural de Paris, mas, sobretudo, o caldeirão político, com a radicalização entre monarquistas, les fleurdelysés, e bonapartistas, sendo um prenúncio da queda dos Bourbon, na figura de Charles X, em 1830, e do acordo monárquico-parlamentar, para colocar no poder, Louis-Philippe d’Orléans, aclamado como rei constitucional. Este último rei de França enfrenta o levante de 1832, um dos momentos altos do romance, na Terceira e Quarta parte – Marius e O idílio da rua Plumet e a epopeia da rua Saint-Denis –, envolvendo Jean Valjean, Marius, Gavroche e Javert. O livro 3, En l’année 1817, é, sobretudo, a apresentação de Fantine, vítima da sua imaturidade, e a introdução de sua filha Cosette, l’Alouette.

miseraveis victor hugo
A pequena CosetteBrion, 1862
A ligação do livro 3 com o 4, Confiar é, algumas vezes, entregar (Confier, c’est quelquefois livrer, 3 capítulos, p. 117-126), é decisiva para a consolidação do perfil de Fantine. Imatura e confiando em Tholomyès, ela se entregara ao estudante, que a abandonara com uma filha, Cosette, conforme se pode ver no livro anterior. No livro 4, Fantine confia na Thénardier, entregando Cosette a seus cuidados, achando estar diante de uma mãe como ela mesma (v. o capítulo I, “Uma mãe que encontra uma outra dela”). Crendo ter encontrado na Thénardier uma mãe igual a si própria, Fantine deixa Cosette no albergue Au Sergent de Waterloo, em Montfermeil, e se dirige à sua cidade natal, Montreuil-sur-Mer, em busca de um emprego com que possa manter dignamente a si própria
miseraveis victor hugo
Os ThénardierBrion, 1862
e à filha (“Viver honestamente de seu trabalho, que graça do céu!”, I, 5, 8, p. 141). Os Thénardier exploram Fantine e Cosette, criando pretextos para exigir sempre mais dinheiro, enquanto fazem da menina, apesar de sua pouca idade, uma criada da casa, cujo direito não vai além de roupas esfarrapadas e migalhas de comida (“Eis que esta cotovia vai se tornar uma vaca leiteira”, I, 6, 1, p. 160).

Os dois livros seguintes, A descida (La descente, 13 capítulos, p. 127-158) e Javert (Javert, 2 capítulos, p. 159-168), são uma consequência da desventura que se abate sobre Fantine, cuja boa natureza a leva a confiar nas pessoas. Marcam também o início da perseguição implacável de Javert a Jean Valjean. A descida de Fantine a conduz à miséria, obrigando-a a vender-se, aos poucos – cabelos, dentes e corpo –, resultando na sua prostituição e na sua prisão, vítima da exploração dos Thénardier, da injustiça invejosa da chefe das operárias da fábrica em que trabalha (“uma górgona chamada madame Victurnien, guardiã e porteira da virtude de todo o mundo”, I, 5, 8, p. 143) e da violência de Bamatabois, tipo aburguesado e fátuo. É uma descida, cujo final é morrer tuberculosa, sem ver a filha (“Ela tudo sentiu, tudo suportou, em tudo foi provada, tudo sofreu, tudo perdeu, tudo chorou”, I, 5, 11, p. 149).

miseraveis victor hugo
Javert prende FantineBrion, 1862
Javert liga-se a Fantine, ao levá-la à prisão. Do mesmo modo, Javert é o elo entre os dois livros seguintes, O caso Champmathieu (L’affaire Champmathieu, 11 capítulos, p. 169-222) e Contragolpe (Contre-coup, 5 capítulos, p. 223-237). Além das tensões iniciais, já apresentadas ao leitor, no decorrer dos livros anteriores, esses dois livros trazem novas tensões, adensando-as, tendo nas ações persecutórias de Javert o símbolo da implacabilidade de uma justiça caolha, que acredita apenas na punição, jamais na recuperação.

Jean Valjean, por sua vez, em Contragolpe, vai em direção contrária ao pensamento punitivo de Javert: há homens que se recuperam e que buscam a justiça, mesmo em detrimento de sua comodidade. O contragolpe de Jean Valjean, longe de ser apenas contra ele mesmo, é contra a injustiça, revertendo sua ação, portanto, em seu favor, por demonstrar que não há justiça exterior, se não houver justiça interior. Para ser fiel ao ensinamento do bispo Myriel Bienvenu, Jean Valjean luta com a sua própria consciência, em busca da paz de espírito, que a descoberta da justiça interior lhe proporciona.

miseraveis victor hugo
Brion, 1862
A relação entre os livros e as personagens desvela a complexidade na estruturação do livro. Senão, vejamos.

Esta primeira parte (Fantine) é estruturada em contrastes, que se aprofundarão ao longo da narrativa. A base é o Monsenhor Bienvenu, cuja atuação não passará dessa parte, mas que deixará uma marca profunda na personalidade de Jean Valjean, responsável por sua transformação. Os principais contrastes são entre Monsenhor Bienvenu/Javert; Jean Valjean/Thénardier. Fantine situa-se numa área intermediária, em conflito aberto com Javert, num conflito resolvido com Jean Valjean, e atingida miseravelmente pelos Thénardier, sem ter noção da realidade cruel em que a sua filha se encontra (“Era qualquer coisa como a mosca servindo aranhas”, II, 3, 3, p. 303).

Pode-se dizer que Monsenhor Bienvenu age em função da piedade e do amor (“Ele trabalhava para a extração da piedade”, I, 1, 14, 48). Javert age em função da impiedade, movido pelo rancor e pelo ressentimento (“Mas a ocasião vinda, via-se de repente sair de todo esse homem sombrio, como de uma emboscada, uma fronte angulosa e estreita, um olhar funesto, um queixo ameaçador, mãos enormes, e um bastão monstruoso”, I, 5, 5, p. 137).

miseraveis victor hugo
Brion, 1862
Se Jean Valjean, por sua vez, é um injustiçado em remissão (“Dir-se-ia que ele hesitava entre os dois abismos, aquele onde se perde e aquele onde se salva. Ele parecia prestes a quebrar esse crânio ou a beijar essa mão”, I, 2, 11, p. 83), Thénardier é o ser abjeto, em franco progresso para a vileza mais sórdida:

“Existem almas caranguejos recuando continuamente em direção às trevas, retrocedendo na vida, em lugar de nela avançar, empregando a experiência em aumentar sua disformidade, piorando sem cessar, e se impregnando cada vez mais de uma treva crescente. Esse homem e essa mulher eram destas almas” (I, 4, 2, p. 123).

Já Fantine (possível decapitação de “Enfantine”, conforme a nota 34 do Livro III, p. 1176) tem no seu perfil casto e imaturo os elementos que, pela vileza dos outros, a conduzem ao erro (“Há muitas destas virtudes
miseraveis victor hugo
FantineBrion, 1862
no chão; um dia, elas estarão no alto. Esta vida tem um dia seguinte. [...] Os maus têm uma felicidade negra”, I, 5, 9, p. 145).

Javert busca a dura punição para Fantine e Jean Valjean, como uma maneira de preencher o vazio de um pai e de uma mãe transgressores da lei. O pai era um condenado às galés, como Jean Valjean (I, 5, 5, p. 136); a mãe, uma cartomante, que o teve na prisão. No seu julgamento, os que cometiam crimes estavam perdidos para sempre, jamais acreditou na recuperação de um apenado (“Estes estão irremediavelmente perdidos. Nada de bom pode surgir daí”, I, 5, 5, p. 137). Javert procurava reparar a injustiça com o rancor, a perseguição implacável e a punição irremediável (I, 5, 5, p. 136 e 137):


Os livros A queda (La chute) e A descida (La descente) revelam um contraste importante, na trajetória de Jean Valjean e de Fantine, que os põe em conflito, mas que também os aproxima. No roubo cometido contra o bispo Bienvenu, Jean Valjean cai, mas sua trajetória será buscar a justiça, com base na compreensão. O título do capítulo, portanto, é ambivalente, se aplicando
miseraveis victor hugo
Bienvenu e ValjeanBrion, 1862
inicialmente ao Monsenhor Bienvenu, no seu perfil de homem bom e justo, e a Jean Valjean, cuja trajetória irá confirmar a sua bondade, expressa nas ações, como fazia o bispo, e não apenas no vazio das palavras. Jean Valjean procurava reparar a injustiça com a caridade e a compreensão, acreditando na recuperação e na remissão do seu semelhante, através do trabalho, da busca da dignidade humana e da valorização da vida.

A descida de Fantine é no sentido inverso ao da trajetória de Jean Valjean. Vítima do logro de Tholomyès, da calúnia de Madame Victurnien, da exploração dos Thénardier e da incompreensão e da injustiça de Javert, que a pune, sem apuração dos fatos, Fantine faz um itinerário de queda moral, para a miséria, cujo ápice é a prostituição. Ele cai e se levanta moralmente; ela desce e se degrada. A queda é uma ação acabada, que leva a uma ação em processo – a transformação espiritual; a descida é uma ação em processo, que leva a uma ação acabada – a morte na infâmia.

A presença do Monsenhor Myriel Bienvenu é decisiva para a compreensão desses acontecimentos. O bispo age como um elemento importante para a transformação de Jean Valjean, determinante para que, na sua identidade de M. Madeleine, ele aja em favor dos operários de sua fábrica, em favor da cidade, em favor de Fauchelevant, salvando a sua vida,
miseraveis victor hugo
M. Madeleine (Jean Valjean)Brion, 1862
sob o risco de ser reconhecido por Javert; em favor de Fantine, sobrepondo a sua autoridade e seu humanismo diante da implacabilidade obsessiva do inspetor de polícia, e vencendo a batalha da consciência quando a justiça o chama à responsabilidade, no caso Champmathieu. Mesmo com a perda injusta de sua liberdade, resultando na perda de tudo o que construiu para si e para a cidade de Montreuil-sur-Mer, Jean Valjean decide revelar a sua identidade, a deixar que um inocente, Champmathieu, seja condenado em seu lugar. Com o bispo Bienvenu, ele aprendera que as ações não podem se distanciar das palavras (v. o capítulo “As obras semelhantes às palavras”, I, 1, 4, p. 12-17): ser justo é diferente de parecer justo. É melhor parecer mau sob o olhar dos outros, mas ter a alma em paz, pela ação justa e humanitária desenvolvida, do que parecer bom, com a alma enlameada. Ao que parece, Victor Hugo compõe o personagem não apenas tendo em mente o verdadeiro ensinamento do Cristo, mas também com os olhos postados em Platão: é melhor sofrer a injustiça do que cometê-la.

Não podemos esquecer os grandes momentos dessa primeira parte, que devem ser retomados e aprofundados pela releitura. Veja-se, por exemplo, o diálogo entre monsenhor Bienvenu e o convencional G (I, 1, 10, “O bispo em presença de uma luz desconhecida”, p. 30-39), um defendendo a justiça divina; o outro, a justiça social, ambos homens notáveis que se admiram
miseraveis victor hugo
G, o convencional, que habita as montanhas de Digne.Brion, 1862
e se respeitam pelos seus princípios; ambos relegados a um segundo plano por seus pares. O bispo, pela Igreja, que se exaure no luxo e na busca do poder temporal; G, pelos revolucionários, que veem o poder não como uma forma de melhorar a sociedade, mas como instrumento de vingança contra seus opositores e um meio de nele se perpetuar, fazendo aquilo que detestavam nos que foram combatidos.

Os dois embates de Jean Valjean consigo próprio são dois capítulos marcantes de narrativa psicológica. O primeiro traduz um momento de grandes contrastes entre Jean Valjean e a sociedade (I, 1, 13, “Petit-Gervais”, p. 86-92), num contínuo jogo antitético entre maldade e bondade; anjo e monstro; a besta e o homem; o instinto e a inteligência; as densidades obscuras e a luz. O segundo, revelando um conflito, quase aporia, entre salvar o corpo e perder a alma, ou salvar a alma e perder o corpo (I, 7, 3, “Uma tempestade sob um crânio”, p. 174-187), nesse conflito entre esconder seu nome e salvar sua vida, e denunciar-se, mas salvar sua alma, vemos o grande escritor Victor Hugo na revelação da alma humana (I, 7, 3, p. 175):

“Há um espetáculo maior que o mar, é o céu; há um espetáculo maior que o céu, é o interior da alma.”
miseraveis victor hugo
Victor Hugo (1802—1885), desenhado por Auguste Rodin, (1885) ▪ Metmuseum, NY
Indicamos, ainda, o capítulo “Christus nos liberavit” (“Cristo nos livrou”, I, 5, 11, p. 149-150), em que a história de Fantine é a história da sociedade comprando uma escrava à miséria, causada pelo abandono, exploração, fome e frio, cristalizando-se na prostituição.

Esta primeira parte de Os miseráveis, portanto, prepara o caminho para a transformação de Jean Valjean, que ganhará força e consolidará a sua rota em direção à justiça, fundamentada na piedade e na caridade, sobretudo com o resgate de Cosette das mãos dos Thénardier, que o faz descobrir o amor, como o grande motor da vida (I, 2, 13, p. 91-92):

“Ele, então, por assim dizer, se contemplou, face a face, e ao mesmo tempo, através dessa alucinação, ele via em uma profundidade misteriosa uma espécie de luz que ele tomou inicialmente por um castiçal. Olhando com mais atenção essa luz que aparecia na sua consciência, reconheceu que ela tinha a forma humana, e que o castiçal era o bispo.”


COMENTE, VIA FACEBOOK
COMENTE, VIA GOOGLE
  1. Anônimo6/9/25 06:01

    O erudito mestre distribuindo os seus saberes. Parabéns, Milton. Francisco Gil Messias.

    ResponderExcluir
  2. Anônimo6/9/25 07:31

    Milton, como sempre nos encantando com o seu conhecimento e vocação extremada para o magistério! obrigado Mestre!
    Fernando Aquino

    ResponderExcluir

leia também