Na primeira parte de Os miseráveis (Fantine, 08 livros, 70 capítulos), vemos as origens e os perfis do Monsenhor Myriel Bienvenu, Jean Valjean, Fantine e Javert, um primeiro esboço da personalidade do casal Thérnadier, além de uma breve aparição de Cosette. Basicamente, temos aí os personagens mais importantes para a tessitura da trama, aos quais serão acrescentados, posteriormente, Marius e Gavroche, ambos na terceira parte (Marius).
Realizando uma leitura rápida do título dos 8 livros que constituem a Primeira parte – Un juste (Um justo), La chute (A queda), En l’année 1817 (No ano de 1817), Confier, c’est quelquefois livrer (Confiar é, algumas vezes, entregar), La descente (A descida), Javert (Javert), L’affaire Champmathieu (O caso Champmathieu) e Contre-coup (Contragolpe) –, constatamos a existência de um entrelaçamento a nos dar uma ideia de como se organiza estruturalmente esse primeiro momento, crucial para o desenrolar da narrativa (estamos utilizando a edição francesa Oeuvres completes dos romances de Hugo, volume II, preparada e anotada por Guy e Annette Rosa, editada em Paris, Robert Laffont, 2008).
Os miseráveis (Primeira Parte), de Victor Hugo ▪ edição original (Lacroix, Verboeckhoven & Cie) ilustrada por Gustave Brion, 1862 ▪ Fonte: Gallica
O livro 3, No ano de 1817 (En l’année 1817, 9 capítulos, p. 93-115), abre com um capítulo, “O ano de 1817” (“L’anné 1817”, p. 92-97), que parece desvinculado da narrativa, mas só parece. Ele é necessário, por fazer parte de uma recorrência no romance, que busca situar o contexto político, histórico e geográfico em que acontece a narrativa. O ano de 1817 é o ano 3 da segunda restauração dos Bourbon, com Luís XVIII alçado ao poder, após a derrota de Napoleão em Waterloo, em 1815, e a sua prisão, na ilha de Santa Helena (I, 3, 1, p. 97):
“Não existem pequenos fatos na humanidade, nem pequenas folhas na vegetação – são úteis. É da fisionomia dos anos que se compõe a figura dos séculos.”
Brion, 1862
A pequena CosetteBrion, 1862
Os ThénardierBrion, 1862
Os dois livros seguintes, A descida (La descente, 13 capítulos, p. 127-158) e Javert (Javert, 2 capítulos, p. 159-168), são uma consequência da desventura que se abate sobre Fantine, cuja boa natureza a leva a confiar nas pessoas. Marcam também o início da perseguição implacável de Javert a Jean Valjean. A descida de Fantine a conduz à miséria, obrigando-a a vender-se, aos poucos – cabelos, dentes e corpo –, resultando na sua prostituição e na sua prisão, vítima da exploração dos Thénardier, da injustiça invejosa da chefe das operárias da fábrica em que trabalha (“uma górgona chamada madame Victurnien, guardiã e porteira da virtude de todo o mundo”, I, 5, 8, p. 143) e da violência de Bamatabois, tipo aburguesado e fátuo. É uma descida, cujo final é morrer tuberculosa, sem ver a filha (“Ela tudo sentiu, tudo suportou, em tudo foi provada, tudo sofreu, tudo perdeu, tudo chorou”, I, 5, 11, p. 149).
Javert prende FantineBrion, 1862
Jean Valjean, por sua vez, em Contragolpe, vai em direção contrária ao pensamento punitivo de Javert: há homens que se recuperam e que buscam a justiça, mesmo em detrimento de sua comodidade. O contragolpe de Jean Valjean, longe de ser apenas contra ele mesmo, é contra a injustiça, revertendo sua ação, portanto, em seu favor, por demonstrar que não há justiça exterior, se não houver justiça interior. Para ser fiel ao ensinamento do bispo Myriel Bienvenu, Jean Valjean luta com a sua própria consciência, em busca da paz de espírito, que a descoberta da justiça interior lhe proporciona.
Brion, 1862
Esta primeira parte (Fantine) é estruturada em contrastes, que se aprofundarão ao longo da narrativa. A base é o Monsenhor Bienvenu, cuja atuação não passará dessa parte, mas que deixará uma marca profunda na personalidade de Jean Valjean, responsável por sua transformação. Os principais contrastes são entre Monsenhor Bienvenu/Javert; Jean Valjean/Thénardier. Fantine situa-se numa área intermediária, em conflito aberto com Javert, num conflito resolvido com Jean Valjean, e atingida miseravelmente pelos Thénardier, sem ter noção da realidade cruel em que a sua filha se encontra (“Era qualquer coisa como a mosca servindo aranhas”, II, 3, 3, p. 303).
Pode-se dizer que Monsenhor Bienvenu age em função da piedade e do amor (“Ele trabalhava para a extração da piedade”, I, 1, 14, 48). Javert age em função da impiedade, movido pelo rancor e pelo ressentimento (“Mas a ocasião vinda, via-se de repente sair de todo esse homem sombrio, como de uma emboscada, uma fronte angulosa e estreita, um olhar funesto, um queixo ameaçador, mãos enormes, e um bastão monstruoso”, I, 5, 5, p. 137).
Brion, 1862
“Existem almas caranguejos recuando continuamente em direção às trevas, retrocedendo na vida, em lugar de nela avançar, empregando a experiência em aumentar sua disformidade, piorando sem cessar, e se impregnando cada vez mais de uma treva crescente. Esse homem e essa mulher eram destas almas” (I, 4, 2, p. 123).
Já Fantine (possível decapitação de “Enfantine”, conforme a nota 34 do Livro III, p. 1176) tem no seu perfil casto e imaturo os elementos que, pela vileza dos outros, a conduzem ao erro (“Há muitas destas virtudes
FantineBrion, 1862
Javert busca a dura punição para Fantine e Jean Valjean, como uma maneira de preencher o vazio de um pai e de uma mãe transgressores da lei. O pai era um condenado às galés, como Jean Valjean (I, 5, 5, p. 136); a mãe, uma cartomante, que o teve na prisão. No seu julgamento, os que cometiam crimes estavam perdidos para sempre, jamais acreditou na recuperação de um apenado (“Estes estão irremediavelmente perdidos. Nada de bom pode surgir daí”, I, 5, 5, p. 137). Javert procurava reparar a injustiça com o rancor, a perseguição implacável e a punição irremediável (I, 5, 5, p. 136 e 137):
“Javert sério era um dogue; quando ria, era um tigre. De resto, pouco crânio, muito maxilar, cabelos escondendo a fronte e caindo sobre as sobrancelhas, entre os olhos uma ruga central permanente como uma estrela de cólera, o olhar obscuro, a boca fina e temível, o ar do comando feroz.”
[...]
“Ele partilhava plenamente a opinião desses espíritos extremos que atribuem à lei humana não sei qual poder de fazer ou, se quiserem, de constatar demônios, e que colocam um Estiges embaixo da sociedade. Ele era estoico, sério, austero; sonhador triste; humilde e altivo, como os fanáticos.”
[...]
“Ele partilhava plenamente a opinião desses espíritos extremos que atribuem à lei humana não sei qual poder de fazer ou, se quiserem, de constatar demônios, e que colocam um Estiges embaixo da sociedade. Ele era estoico, sério, austero; sonhador triste; humilde e altivo, como os fanáticos.”
Os livros A queda (La chute) e A descida (La descente) revelam um contraste importante, na trajetória de Jean Valjean e de Fantine, que os põe em conflito, mas que também os aproxima. No roubo cometido contra o bispo Bienvenu, Jean Valjean cai, mas sua trajetória será buscar a justiça, com base na compreensão. O título do capítulo, portanto, é ambivalente, se aplicando
Bienvenu e ValjeanBrion, 1862
A descida de Fantine é no sentido inverso ao da trajetória de Jean Valjean. Vítima do logro de Tholomyès, da calúnia de Madame Victurnien, da exploração dos Thénardier e da incompreensão e da injustiça de Javert, que a pune, sem apuração dos fatos, Fantine faz um itinerário de queda moral, para a miséria, cujo ápice é a prostituição. Ele cai e se levanta moralmente; ela desce e se degrada. A queda é uma ação acabada, que leva a uma ação em processo – a transformação espiritual; a descida é uma ação em processo, que leva a uma ação acabada – a morte na infâmia.
A presença do Monsenhor Myriel Bienvenu é decisiva para a compreensão desses acontecimentos. O bispo age como um elemento importante para a transformação de Jean Valjean, determinante para que, na sua identidade de M. Madeleine, ele aja em favor dos operários de sua fábrica, em favor da cidade, em favor de Fauchelevant, salvando a sua vida,
M. Madeleine (Jean Valjean)Brion, 1862
Não podemos esquecer os grandes momentos dessa primeira parte, que devem ser retomados e aprofundados pela releitura. Veja-se, por exemplo, o diálogo entre monsenhor Bienvenu e o convencional G (I, 1, 10, “O bispo em presença de uma luz desconhecida”, p. 30-39), um defendendo a justiça divina; o outro, a justiça social, ambos homens notáveis que se admiram
G, o convencional, que habita as montanhas de Digne.Brion, 1862
Os dois embates de Jean Valjean consigo próprio são dois capítulos marcantes de narrativa psicológica. O primeiro traduz um momento de grandes contrastes entre Jean Valjean e a sociedade (I, 1, 13, “Petit-Gervais”, p. 86-92), num contínuo jogo antitético entre maldade e bondade; anjo e monstro; a besta e o homem; o instinto e a inteligência; as densidades obscuras e a luz. O segundo, revelando um conflito, quase aporia, entre salvar o corpo e perder a alma, ou salvar a alma e perder o corpo (I, 7, 3, “Uma tempestade sob um crânio”, p. 174-187), nesse conflito entre esconder seu nome e salvar sua vida, e denunciar-se, mas salvar sua alma, vemos o grande escritor Victor Hugo na revelação da alma humana (I, 7, 3, p. 175):
“Há um espetáculo maior que o mar, é o céu; há um espetáculo maior que o céu, é o interior da alma.”
Victor Hugo (1802—1885), desenhado por Auguste Rodin, (1885) ▪ Metmuseum, NY
Esta primeira parte de Os miseráveis, portanto, prepara o caminho para a transformação de Jean Valjean, que ganhará força e consolidará a sua rota em direção à justiça, fundamentada na piedade e na caridade, sobretudo com o resgate de Cosette das mãos dos Thénardier, que o faz descobrir o amor, como o grande motor da vida (I, 2, 13, p. 91-92):
“Ele, então, por assim dizer, se contemplou, face a face, e ao mesmo tempo, através dessa alucinação, ele via em uma profundidade misteriosa uma espécie de luz que ele tomou inicialmente por um castiçal. Olhando com mais atenção essa luz que aparecia na sua consciência, reconheceu que ela tinha a forma humana, e que o castiçal era o bispo.”