Introdução A influência do Medievo permeia toda a produção literária que lhe é posterior — sobretudo a que se vincula a estéticas na...

Medievalismo e poesia moderna

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Introdução

A influência do Medievo permeia toda a produção literária que lhe é posterior — sobretudo a que se vincula a estéticas nas quais é visível o primado da subjetividade, da musicalidade ou da emoção. Seja através dos trovadores galego-portugueses, com as cantigas de amor e, sobretudo, as de amigo, seja pela vertente dos romanceiros, observa-se, desde o Pré-Romantismo, a presença de temas e de recursos retórico-estilísticos ligados à Idade Média.

Segundo Denis de Rougemont, “toda a poesia do Ocidente descende do amor cortês e do romance bretão que dele deriva” e, diante disso, ostenta marcas que a vinculam, tanto no domínio da estrutura quanto no dos motivos e das imagens, a essas matrizes fundamentais.

Um dos exageros da história literária, ligado à modernidade poética (e aqui permitimo-nos mencionar, particularmente, o modernismo brasileiro), é o de que ela representou uma ruptura na concepção e, sobretudo, na maneira de fazer poesia. Estudando autores brasileiros desde o Simbolismo, percebe-se que as atitudes e os processos ligados à nova poética, se enfatizam atitudes como a metalinguagem e o centramento na fatura do objeto estético, não dispensam, contudo, os recursos que acentuam a musicalidade e a emoção — e de que são exemplos o paralelismo, a reiteração, o metro heptassilábico e outros expedientes ligados à poesia do Medievo.

Três exemplos paradigmáticos

O estudo evolutivo das espécies líricas (alba, barcarola, tenção etc.) demonstra que os poetas modernos se utilizam desses moldes tradicionais, transformando-os e adaptando-os ao seu artesanato e ao seu temperamento. Remontando comumente à Bíblia, tais espécies evoluem preservando certos traços característicos, ligados ao teor emotivo-sentimental das composições e, ao mesmo tempo, incorporando procedimentos e marcas lexicais, estruturais e semânticas próprias dos diferentes estilos de época.

O estudo desse continuum demonstra que essas espécies estão mais presentes do que se pensa nos textos dos autores modernos.

Alguns desses autores vêm sendo estudados no projeto integrado de pesquisa Precursores medievais da poesia moderna: pesquisa e tradução de texto, que desenvolvemos em parceria com o Prof. Dr. Maurice Van Woensel. De um conjunto amplo que tem se servido dos moldes e dos temas próprios da poesia medieval, destacamos neste artigo Onestaldo de Pennafort, Augusto dos Anjos e João Cabral de Melo Neto. Onestaldo de Pennafort é, pelo menos dentre os citados, quem mais acusa influência da poesia medieval. Autor vinculado ao nosso Simbolismo e injustamente pouco conhecido hoje, nele são perceptíveis as ressonâncias dos trovadores galego-portugueses. Das cantigas de amor e de amigo, a sua lírica preserva sugestões e recursos formais (como a técnica do paralelismo) e, sobretudo, a representação idealizada do objeto amoroso, diante de quem o eu poético se prostra em expectativa e quase veneração — conforme atestam estes versos do poema “Chuva”:

“Se ela estivesse aqui... Se ela viesse / escutar o meu nome / que nos meus lábios toma a forma de uma prece.”

Onestaldo de Pennafort atualiza tópicos medievais como o do olhar, desencadeador por excelência da paixão amorosa, e o do amor concebido como um obstáculo. O seu lirismo, recheado de imagens em que sobressaem a sublimação e a idealização, ilustra o paradoxo bem medieval de “um amor que renuncia à possibilidade de satisfação do desejo amoroso”, ou seja, de uma paixão que se compraz em cantar e enaltecer aquilo que a torna impossível.

Conforme observa Denis de Rougemont ao comentar o mito de Tristão e Isolda, nas peripécias em que os dois se envolvem “o obstáculo já não está a serviço da paixão fatal; ao contrário, tornou-se o objetivo, o fim desejado por si mesmo”. Esse culto do obstáculo acaba desviando os amantes um do outro. O dever da renúncia os faz perseguir não o objeto, perdido na miragem da idealização, mas o amor em si mesmo, ou seja, o próprio ato de amar. Tudo o que o amor lhes propicia é o prazer masoquista de cultivar o obstáculo — condição esta dramaticamente tematizada por Onestaldo de Pennafort, por exemplo, no poema “Index”:

“Nosso amor será então um obstáculo que nos separe? (...) / Ah, estás do outro lado do amor! / Por que o puseste entre nós dois, como um obstáculo? / Se eu só te amava a ti, / por que puseste o amor entre nós dois?”

Nem tudo no poeta, contudo, é tradição. Entre os traços de modernidade presentes em sua poesia, destacam-se o uso do verso livre, a ironia e certo naturalismo que lhe tempera as notações líricas e reflexivas. A ironia e o naturalismo — cuja nota mais evidente é o recorte vívido, palpável e concreto do elemento natural — constituem o melhor contraponto às representações vagas e sublimadas do amor e de tudo o que com ele se relaciona.

No caso de Augusto dos Anjos, interessou-nos sobretudo a leitura do poema “Barcarola”. O título dessa composição, como se sabe, refere-se a uma espécie medieval das cantigas de amigo, na qual o eu lírico — geralmente uma moça do povo — lamenta a partida do amado para o serviço militar. Como vários autores já o fizeram, Augusto dos Anjos modifica esse núcleo temático e, da espécie medieval, preserva somente o motivo marinho.

O poema se estrutura, bem ao modo barroco, como uma representação alegórica do percurso existencial humano, conforme explicitam os versos seguintes:

“Vai uma onda, vem outra onda, E nesse eterno vaivém, Coitadas! Não acham quem, Quem as esconda, as esconda... Alegoria tristonha Do que pelo mundo vai! Se um sonha e se ergue, outro cai; Se um cai, outro se ergue e sonha.”

O curioso é que, dos poemas inseridos em Eu e outras poesias, “Barcarola” é o único construído em redondilhas maiores, metro essencialmente popular e típico dos romances medievais. Isso demonstra que, embora tratando a espécie com bastante liberdade — isto é, adaptando-a ao seu artesanato, ao seu temperamento e à sua visão de mundo —, o poeta tinha consciência desse vínculo com a tradição e quis deixá-lo perceptível.

No poema de Augusto dos Anjos, o que era tradicionalmente um lamento de amor ligado a motivos marinhos transforma-se em um lúgubre reconhecimento do poder do destino, confundido com Tânatos:

“Mas desgraçado do pobre Que em meio da vida cai! Esse não volta, esse vai Para o túmulo que o cobre.”

Traços da melancolia do poeta — traduzida em culpa, perda da autoestima e desejo de morte — repercutem em imagens de luto e desconstituição da matéria. E mesmo a voz da sereia, que comumente se associa à sedução, deixa de ter qualquer conotação erótica para significar, tão-somente, pessimismo e dor. Segundo o poeta, essa voz:

“É como um réquiem profundo De tristíssimos bemóis... Sua voz é igual à voz Das dores todas do mundo.”

Na leitura de “Auto do Frade”, de João Cabral de Melo Neto, percebemos a coexistência de elementos medievais e modernos e procuramos destacar, ao lado dos recursos tradicionais, a estilização da matéria poemática. João Cabral de Melo Neto notabilizou-se por seu rigor e frieza. Poeta avesso à música e aos expedientes que apelam à sentimentalidade, nele o efeito poético resulta de uma escrupulosa engenharia na escolha das palavras.

Daí que ele rejeite a gratuidade das imagens fáceis, provindas do que se chama inspiração, e opte por um construtivismo em que se privilegia o difícil, o refletido, o elaborado. Sua criação poética, de base essencialmente metalinguística, visa ao “desmascaramento das pretensões ilusionistas do discurso literário”, conforme observa Antônio Carlos Secchin.

O que pouco se comenta, no entanto, é que o poeta deve muito à tradição da lírica ocidental, representada pela vertente medieval da poesia ibérica — a mesma que também influenciou os cordelistas nordestinos. Ao ler outro famoso auto de João Cabral de Melo Neto, Morte e vida severina, Maurice Van Woensel observa a necessidade de interpretá-lo “contra o pano de fundo da literatura ibérica tradicional, já que esta enformou substancialmente a criação poética cabralina”.

Recursos formais como o verso heptassilábico e as rimas pares assonantes evidenciam a ligação de certos poemas do pernambucano com os romances, dos quais esses poemas herdaram o tom, o ritmo e o equilíbrio entre a substância lírica e a narrativa.

Ao ler Auto do Frade, contudo, o que procuramos destacar não foram os elementos da tradição, e sim a forma como, nessa espécie medieval — o auto —, tais elementos se articulam com processos e recursos ligados à modernidade poética.

Há nesse poema, ao lado das redondilhas, da oralidade e das rimas pares, todo um trabalho de estilização que se liga a uma concepção moderna do discurso poético — conforme atesta, por exemplo, o emprego da elipse, da derivação imprópria e do neologismo.A par do substrato histórico, de forte apelo emocional, a tessitura formal de Auto do Frade revela desvios no plano morfológico, sintático e semântico da língua. Tais recursos operam no sentido de uma ininteligibilidade imediata, dificultando propositadamente a comunicação e provocando no leitor/ouvinte o estranhamento. O objetivo de tais escolhas, dentro do que postulam os formalistas russos (Chklóvski, particularmente), é dificultar a percepção do objeto ou da mensagem para aumentar-lhe a expressividade. Pois notamos e retemos melhor aquilo que nos esforçamos por captar ou compreender. Nessa composição “tradicional” de João Cabral de Melo Neto, a quebra do automatismo perceptivo ocorre, entre outros recursos, mediante a supressão de palavras — por exemplo:

“Ei-lo chega, como se nada, / como se não fosse o condenado.” (159) “Não deixarão chegar onde ele, / há um eriçado paredão.” (163) “Na sua boca tudo é claro / como é claro o dois e dois quatro.” (159)

Ocorre também pela mudança na classe dos vocábulos, ou conversão — o outro nome com que se designa a derivação imprópria. É comum, por exemplo, a transformação de advérbios e conjunções em substantivos:

“– A Taborda, como está longe / – A mais de três gritos deste onde.” (156) “...sob um sol que cai de cima / e é justo com talvezes / e até mesmo todavias.” (187)

Neologismos como “quarto-santaria”, “faz-de-bispo” (espécie de “bispo de faz-de-conta”), “milvi” (no sentido de visão múltipla e confusa), juntamente com os recursos que nos foi possível apontar neste trabalho, dão bem a medida da sofisticação que o poeta imprime ao signo linguístico, visando a torná-lo ambíguo e opaco.

O resultado é que Auto do Frade alimenta-se de uma tensão em que se equilibram presente e passado — o popular e o erudito.

Procedimentos futuros

Muito há que se investigar no âmbito das relações entre a poesia medieval e a poesia moderna. Apontamos abaixo alguns dos procedimentos que, a médio e longo prazo, constituem metas do projeto de pesquisa acima referido.

Na leitura das cantigas de amor e de amigo (e ainda, em menor quantidade, nas de escárnio e maldizer), devem-se investigar os esquemas métricos, rítmicos e rímicos, assim como as imagens e os topoi que evoluíram em temas ou motivos incorporados à lírica moderna — como o dos olhos verdes ou o da morte por amor. Do ponto de vista rigorosamente estrutural, será enfatizado o estudo do paralelismo e da reiteração, que serão confrontados com expedientes semelhantes utilizados por autores como João Cabral de Melo Neto, Cecília Meireles, Manuel Bandeira, Onestaldo de Pennafort e outros.

Confrontando-se o lirismo trovadoresco com o moderno, um dos problemas a ser investigado é a transformação do ponto de vista do eu poético, o qual, nos trovadores, como se sabe, vincula-se rigorosamente (com raras e transgressivas exceções) ao tipo de cantiga. Se esta é de amor, fala um eu lírico masculino; se é de amigo, a voz é da mulher.

Na modernidade, desfaz-se essa convenção — que não era bem uma convenção, pois decorria das relações sociais e dos papéis que cabiam ao homem e à mulher —, e isso concorreu, ao nível da teoria literária, para uma nova caracterização das espécies poéticas. (Onestaldo de Pennafort, por exemplo, intitula “Cantar de amigo” uma composição em que quem fala é o homem.)

O estudo dessas transformações de modelos tradicionais pode ser feito, ainda, considerando-se não apenas a variação da voz como também a dos temas e motivos, na vertente dos poetas chamados neotrovadores.

Esse grupo, representado, entre outros, por José Rodrigues de Paiva, Nadiá Paulo Ferreira e Francisca Nóbrega, dialoga com o passado, prolongando e buscando recriar o lirismo trovadoresco.

Seria útil confrontar a sua produção com a de autores modernos que, na perspectiva da paráfrase ou da paródia, relacionam-se com a poética medieval — destacando-se, entre eles, Manuel Bandeira, Guilherme de Almeida e Hilda Hilst.

Em nível mais geral, será oportuno desenvolver estudos sobre a evolução histórica e formal de espécies como o poema satírico, o poema épico e certos recursos como os versos paralelísticos e os poemas-abecedários, investigando a interdependência entre a poesia erudita e a popular.

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  1. Uma senhora aula, grande Chico. Parabéns. Francisco Gil Messias.

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