Mesmo que lá se vá mais um dia, o crepúsculo se despeja sobre a cidade com a mesma ternura dourada de sempre. Observo da janela os tran...

No coração de um rio

introspeccao nostalgia reflexao interior
Mesmo que lá se vá mais um dia, o crepúsculo se despeja sobre a cidade com a mesma ternura dourada de sempre. Observo da janela os transeuntes, cada um carregando seu fardo invisível de horas, e me pergunto se também sentem isso: a estranha persistência de uma paisagem interior que o tempo não consegue erodir. Os cabelos embranquecem, a pele marca seu território, os joelhos reclamam de subidas que antes eram voos. O corpo, ah, o corpo é um relógio de areia implacável. Mas há algo dentro dele que não aceita a contagem.

É como uma chama que não tem pavio. Não depende de um combustível comum, não se apaga com o vento passageiro das decepções. Mora no centro do peito, um pequeno sol pessoal e teimoso. Já tentaram chamá-lo de ingenuidade, loucura ou falta de juízo. Eu prefiro chamá-lo de sonho. E sonhos, descobri, não envelhecem.

Eles podem ficar adormecidos, soterrados sob a poeira grossa das obrigações. Podem ser esquecidos no fundo de uma gaveta, como uma fotografia desbotada. Mas, um dia, ao arrumar a vida, você os encontra. E surpreende-se: a imagem não embaçou, as cores não desbotaram. Aquele desejo de viajar para um lugar específico, o projeto de aprender um instrumento, a vontade de escrever, de plantar um jardim, de simplesmente ser uma versão mais leve de si mesmo, tudo está lá, intacto, pulsando com a mesma força do primeiro instante.

O rio da vida corre, violento às vezes, lento em outros trechos. Ele arrasta coisas, modifica margens, esculpe pedras. Nos deixamos levar, pensando que somos apenas a correnteza. Mas o essencial, o sonho, não está na superfície movediça. Está no coração de um rio. Lá no fundo, onde a água é quase parada, há um tesouro guardado, à prova de intempéries e do desgaste dos dias.

Mesmo que lá se vá mais um dia, e depois outro, e mais um ano, aquilo que nos habita de verdade, aquilo que dá sentido ao simples ato de respirar, permanece menino. Ri da ideia de calendários e espelhos. É o menino que quer ser astronauta, a moça que quer dançar, o amor que não se declarou, a aventura que ainda chama. É a parte de nós que nunca chegou, mas que também nunca partiu.

Por isso, ao fechar mais um ciclo, não diga que seu sonho envelheceu. Ele apenas espera, paciente e jovem, no coração do rio, que você se lembre de nadar até ele.

Mesmo que lá se vá mais um dia ainda há um lugar em nós que nenhum trânsito, nenhuma planilha, nenhum relógio pontual consegue alcançar. É um território particular onde a grama é mais verde, o ar é mais leve e as leis da física se curvam à nossa vontade. Lá, você pode conversar com os oceanos. Podemos ser heróis de causas impossíveis ou simplesmente donos de uma padaria onde o pão sempre sai crocante e o dia amanhece sem pressa.

Esses sonhos são a coisa mais leve e mais pesada que carregamos. Leves porque não ocupam espaço físico, não fazem barulho, não exigem IPTU. Pesados porque dão sentido aos nossos passos concretos, moldam nossas escolhas e, às vezes, nos cutucam com uma pontinha de saudade do que ainda não vivemos.

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