Ri um bocado do espanto da minha amiga: “Mas isto é um milagre!”. De queixo caído e já octogenária, como eu, ela se via, então, no verdor dos 16 anos, belíssima, dentro de um vestido branco e longo desses preparados a capricho para as grandes ocasiões. A estola – aquela peça de tecido comprida e larga, aquele símbolo de elegância e distinção que sai do pescoço das mulheres, cai-lhes sobre os ombros e lhes desce pelas costas até quase a barra da saia – continha
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o vermelho quase original. Todo o conjunto adveio de uma foto esmaecida, em preto e branco, na moldura feita de madeira e de saudades, muitas saudades.
E me veio sob encomenda, via Zap, porquanto eu já a havia surpreendido com a modificação de uma foto anteriormente colhida da abertura de entrevista por ela concedida a Mirabeau Dias, âncora de um programa de resgate da memória e da cultura paraibanas postado em canal do YouTube com a assinatura valiosa de Germano Romero. Ali, no princípio do vídeo com mais de uma hora de duração, lá estava o trabalho primoroso do fotógrafo Gustavo Moura. Pausei a transmissão a fim de colher aquela imagem com a lente do celular e, feito isso, pus cores na minha amiga, suas mãos entrelaçadas quase numa oração, um parapeito onde repousaria os cotovelos e duas belas paisagens ao fundo: uma com rio, vale e montes e, outra, com o mar.
Duas fotos, portanto, reproduzidas de uma antiga fotografia em preto e branco, porém, dessas que expressam atemporalidade, poesia e profundidade emocional, desde que se tenha o talento de Gustavo. “Foto original melhor do que as fakes”, comentei nos meus despachos. E ela, abismada: “Você inventou isso com Inteligência Artificial?”.
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Foi, sim. É fácil: você acessa o programa de restauração de velhas, desfocadas e desbotadas fotos (há dezenas de opções na Internet, desde softwares profissionais a aplicativos simples em plataformas on line) e parte para as modificações que lhe venham à cabeça. É claro que os mais complexos e sofisticados exigem assinaturas e gente mais capacitada ao manejo. Quanto aos mais simples, inserida a foto desejada num desses programas, basta você pedir, clara e objetivamente, por escrito, as mudanças que deseje para seus originais. Não conto novidade. Qualquer menino de hoje bem sabe disso.
Minha amiga não se furtou ao desafio: “Será que essa, aqui, fica com as cores naturais? Vermelho e branco?”. Então, chegou-me a foto dos seus 16 anos. O que eu ofereci de volta, minutos depois,
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foi algo bem próximo das suas melhores lembranças. Mas achei pouco: criei um namorado igualmente jovem para ela e os pus em pose de dança. Afirmo que o camarada era bonito mesmo. Calçava sapatos italianos e vestia um terno Prada de, ao menos, R$ 30 mil. Besteira minha: corações de 16 anos não se deixam encantar por dinheiro nem ostentação. Nem os de 80, ao que sei dela.
Não publicizo essas brincadeiras, a não ser quando digam respeito a mim e aos meus e, mesmo assim, em ambientes eletrônicos onde acolho e abraço os amigos. Um deles surpreendeu-se com paletó e gravata no que parece ser uma grande e bela biblioteca. Na foto original, capturada da página de Facebook daquela com quem é casado, ele estava com um livro à mão, dentro de casa, onde se permite a bermuda e as chinelas. Fiz, depois disso, um colega de trabalho, Flamengo de quatro costados, vestir a camiseta do Fluminense. E restaurei a fotografia velha e desfocada de outro amigo, este em seus quatro ou cinco anos. O uniforme do Flu, uma das paixões que temos em comum, lhe caiu muito bem. Essas remessas, em ida e volta, é bom ressaltar, dão-se por canais privados.
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As conversas que travamos acerca desses milagres tecnológicos não nos dispensam o receio dos maus usos. Desgraçadamente, tem sido assim: os bons inventos, em qualquer ramo da atividade humana, tornam-se armas de destruição, ferramentas para a aniquilação de corpos, almas e reputações, se operadas por malfeitores, vistam o que vestirem, sentem onde se sentarem.
Eu e minha amiga falamos do desgosto profundo de Santos Dumont, homem que sonhava com a aviação como instrumento de paz e de progresso para a raça humana. Suas angústias o levaram ao suicídio,
Alberto Santos Dumont (1873–1932), inventor e pioneiro da aviação, nascido em Palmira (atual Santos Dumont), Minas Gerais.
em 1932, naquele hotel da praieira Guarujá. A Primeira Guerra Mundial e a Revolução Constitucionalista, ao que se conta, trouxeram-lhe a grave depressão e a esclerose múltipla por ele interrompidas com o próprio enforcamento.
Alfred Nobel – isso mesmo, o sueco que deu nome e dinheiro grosso ao mais cobiçado prêmio à engenhosidade humana, em todos os seus campos – não pretendia mais do que servir à mineração e à construção civil quando misturou nitroglicerina com areia para criar a dinamite. Embora tenha morrido em decorrência de um Acidente Vascular Cerebral, diz-se que sentia remorso pelo uso destrutivo da sua invenção. “Agora me tornei a morte, o destruidor dos mundos”, teria lamentado um Oppenheimer arrependido das explosões (estas planejadas) de Nagasaki e Hiroshima.
E o que dizer de Einstein, de quem se apregoa o arrependimento pela carta na qual alertou Roosevelt quanto à possibilidade de a Alemanha Nazista criar a primeira bomba atômica do mundo com base na fórmula einsteiniana segundo a qual energia é igual à massa multiplicada pela velocidade da luz ao quadrado? Pois bem, esse alerta foi crucial para o início do Projeto Manhattan que pariu as duas bombas soltadas sobre o Japão.
Albert Einstein (1879—1955), físico teórico alemão, naturalizado suiço e posteriormente norte-americano. ▪ Fonte: Wikipedia.
Sabe daquelas ligações telefônicas durante as quais quem nos chama permanece em silêncio? Pois bem, não serei eu a falar, não digo sequer “alô”. Falam que isso decorre do propósito criminoso de clonar sua voz para, ao mínimo, pedidos de dinheiro a seus amigos, ou parentes.
A propaganda eleitoral que já nos bate à porta terá na Inteligência Artificial o território do Demo. Desgraçadamente, a Justiça e os organismos de controle externo de atos e gastos públicos mal sabem como irão enfrentar isso. Como reza a velha expressão popular, “quem viver verá”.
Aleister Crowley (1875—1947), membro da Ordem Hermética da Aurora Dourada e influente ocultista britânico, fundador da doutrina que batizou de Thelema. ▪ Fonte: Wikipedia.
Aliás, a IA, novamente ela, indica-me quem ajudou a popularizar esse termo: no caso, o ocultista inglês Aleister Crowley, ao utilizar expressão latina disso bem próxima como lema mágico, no início do século 20, especificamente, na obra “A erva perigosa: a psicologia do haxixe”, assim traduzida. Terá sido mesmo? Sei lá... Mas sei que teremos, em pouco tempo, as mais pesadas das campanhas políticas já vistas abaixo da Linha do Equador, graças ao manejo criminoso da Ciência da Computação com seus bons frutos, seus milagres e seus pecados. Uma pena, uma terrível pena.