Em 2023, li o livro “Para Sempre”, best-seller da escritora italiana Susanna Tamaro. A obra conta a história de Matteo, um médico cardiologista que vive o luto há 15 anos, recordando constantemente a perda da mulher, Nora, e do filho, David, num acidente de automóvel. Após a morte do pai, Matteo procura refúgio numa montanha, e essa ligação à terra ressignifica toda a sua existência.
De toda a obra, foi precisamente a frase final que mais me chamou a atenção, incomodando-me como uma pedrinha no sapato: “Deus é uma criança de quem precisamos trocar as fraldas”. Fiquei ruminando-a por dias a fio. Para os ouvidos mais escrupulosos, a sentença poderia soar quase como uma heresia. Trocar as fraldas de Deus?! Onde já se viu? A visão com a qual a maioria das pessoa está habituada é a de um Deus distante, do “Deus Pai Todo-Poderoso, criador do céu e da terra, de todas as coisas visíveis e invisíveis”, como apregoou o Credo Niceno-Constantinopolitano há cerca de mil e setecentos anos. Contudo, a mesma profissão de fé afirma, poucas frases adiante, que Deus “se encarnou no seio da Virgem Maria e se fez homem”.
É precisamente esse o mistério do Natal: a Encarnação do Filho de Deus, que o Prólogo do Evangelho de São João narra com rara beleza poética:
No princípio era o Verbo, e o Verbo estava junto de Deus e o Verbo era Deus.
Ele estava no princípio junto de Deus.
Tudo foi feito por ele, e sem ele nada foi feito.
Nele havia vida, e a vida era a luz dos homens.
A luz resplandece nas trevas, e as trevas não a compreenderam.
[...]
E o Verbo se fez carne e habitou entre nós, e vimos sua glória,
a glória que o Filho único recebe do seu Pai, cheio de graça e de verdade.
A frase começou a fazer ainda mais sentido meses depois, em novembro de 2023, quando nasceu meu primeiro filho, Antônio — pouco mais de um mês antes do Natal. Vi-me, então, enredado na difícil missão de trocar suas fraldas, fazê-lo arrotar debruçado sobre o meu ombro, dando leves batidinhas em suas costas; niná-lo para que dormisse, madrugada adentro; vesti-lo; cantar para ele; beijá-lo com cuidado, para que minha barba não irritasse sua pele sensível; abraçá-lo, comprimindo-o contra o meu peito; acalmá-lo quando o choro se tornava mais intenso — muitas vezes de forma frustrada.
Em Antônio, no pequeno e frágil Antônio, eu tinha um vislumbre do que acontecera em Belém, há mais de dois mil anos, quando Deus era apenas uma criança de quem se tinha de trocar as fraldas. O mistério do Natal tornava-se próximo de mim, encarnava-se na minha própria vida. Eu me via, então, fazendo as mesmas coisas que a Virgem Maria
e São José fizeram com aquela Criança recém-nascida, dispensando-lhe os mesmos cuidados que eu dedicava ao meu Toninho.
Uma imagem em particular chama muito a minha atenção. Trata-se de uma representação iconográfica pouco usual do presépio: Maria aparece dormindo, enquanto José é incumbido da missão de fazer o menino Jesus adormecer. Muitas vezes eu me vi naquela imagem.
Organizei-me o máximo que pude para passar os primeiros dias com meu filho e com minha esposa no puerpério. Tirei licença-paternidade estendida, que emendei com férias. Poucos meses depois, as circunstâncias do trabalho levaram-me a passar mais tempo do que o previsto na companhia de ambos: a greve no ensino público federal, que se estendeu de março a junho de 2024.
Outro fato providencial se interpôs nesse caminho: minha aprovação no doutorado na Universidade e a possibilidade de usufruir de uma licença para qualificação, a fim de me dedicar integralmente à pesquisa.
S. Amaral + GD'Art
É evidente que há prazos a cumprir e exigências a atender, mas a vida não entra em “modo avião” durante a pós-graduação — ela continua acontecendo. A licença para o doutorado revelou-se, assim, uma excelente oportunidade de estar ainda mais próximo de Toninho.
Reconheço, inclusive, que sou privilegiado por essa conjunção de circunstâncias, que me permitiu acompanhar mais de perto o desenvolvimento do meu filho — algo que a esmagadora maioria dos pais não consegue fazer. Talvez por isso eu seja um defensor convicto da ampliação da licença-paternidade e do fim da escala seis por um: para que mais pais possam ter a oportunidade que estou tendo, de acompanhar o balbuciar dos primeiros sons, que logo se converterão em palavras; de estar presentes quando o engatinhar se transformar nos primeiros passos; de alimentar, vestir, ninar, passear com os filhos e, sobretudo, estar verdadeiramente presentes em suas vidas.
GD'Art
O Natal não é, meramente, o “aniversário” de Jesus, mas o mistério de um Deus que desceu do céu e se encarnou no seio da Virgem Maria; que se fez próximo de nós.
O Natal é o mistério de um Deus que precisa desesperadamente de nós para fazê-lo dormir, dar-lhe atenção e carinho, niná-lo e — por quê não? — trocar-lhe as fraldas. Só os corações mais empedernidos não se sensibilizam com a figura de um frágil recém-nascido. E é através desse menino que Deus quer se aproximar e fazer morada no meio de nós. Et verbum caro factum est, et habitavit in nobis.