Quando O Quadro-Negro foi lançado pela José Olympio, em 1954, era improvável que a ele eu pudesse ter acesso, nem mesmo à notícia de ...

A representação minimalista de ''O Quadro-Negro''

romance patos paraiba ernani satiro
Quando O Quadro-Negro foi lançado pela José Olympio, em 1954, era improvável que a ele eu pudesse ter acesso, nem mesmo à notícia de sua publicação. Estava iniciando o ginásio mas, àquela época, nenhum professor teria a ousada iniciativa de estudar o autor contemporâneo local ou de indicá-lo para a leitura.

Ancorada no passado, nossa Escola recusava o presente e se tornava incapaz de prenunciar as incertezas do futuro. Naquela visão alienada, chegava-se à aberração de proibir os livros de José Lins do Rego,
romance patos paraiba ernani satiro
privando-nos do texto renovador e revolucionário que deveria ter sido a motivação e o exemplo, para que os jovens estudantes de então se expressassem na linguagem de seu tempo, superando a submissão colonial aos barões assinalados.

Mesmo depois que me tornei leitora apaixonada dos grandes romancistas nordestinos, jamais tive o interesse despertado para o escritor Ernani Sátyro. E, quando isto parecia possível, na efervescente convivência universitária, o político de destaque, no regime vigente a partir de 64, projetou-se como sombra deformadora sobre o intelectual, erguendo a barreira de preconceito responsável pela ignorância de minha geração sobre a obra literária do acadêmico centenário que hoje reverenciamos.

Foi a devoção do estimado confrade Evaldo Gonçalves ao Amigo Velho, que despertou em mim a necessidade de conhecer Ernani Sátyro, para além da memória fixada, com a verdade do depoimento e da pesquisa, no livro Ernani Sátyro: Convivência e Participação. A necessidade de conhecer o escritor, em decorrência do compromisso assumido com os objetivos da Academia Paraibana de Letras.

romance patos paraiba ernani satiro
Evaldo Gonçalves
Procurei O Quadro-Negro e Flávio Sátiro, gentilmente, me presenteou a 3ª edição, possibilitando-me uma entusiástica descoberta e a feliz superação do velho preconceito.

Antes que chegasse ao texto do romance, já tinha a certeza de que estava diante de um verdadeiro escritor. Menos pelo estudo e pelos artigos que o antecedem e revelam o interesse crítico pela ficção de Ernani Sátyro. A grande surpresa veio com o depoimento do autor para os Arquivos Implacáveis, de João Condé. Uma verdadeira síntese de mestre.

romance patos paraiba ernani satiro
Iniciando com a ressalva de que não é fácil dizer como nasce um romance, o escritor encara o desafio. E com estilo sóbrio, em frases curtas e precisas, revelando uma aguda consciência do processo de elaboração ficcional, expõe a gênese de O Quadro-Negro, dando ênfase ao tempo de gestação e aos limites transcendentes entre a realidade e a criação literária. Depoimento capaz de enriquecer qualquer lição de teoria sobre a ficção narrativa.

O Quadro-Negro é um romance escrito em forma de diário. Com esta escolha do modo de narrar, o autor confere intencionalmente ao protagonista, Paulo Márcio, a grande liberdade confessional que se desdobra na análise de si mesmo, do ambiente e dos outros personagens, concretizando o princípio que ele repete até as últimas páginas: Só tem importância o que se passa dentro de mim. Com a variante: me importam as pessoas e nestas, principalmente, os retratos que me ficam cá dentro.

Na abertura do diário, reflexões sobre a linguagem, sobre o processo narrativo, sobre a correspondência necessária entre forma e conteúdo, sobre o estilo. Essa intenção programática da construção literária, inserindo Ernani Sátyro na tendência ostensiva dos escritores modernos que elegeram a metalinguagem como recurso temático e estético, chegando a elaborar uma teoria do conhecimento.

romance patos paraiba ernani satiro
Ernani Sátiro
Perfaz um ano e um mês o tempo da narrativa. Tem início com a chegada do jovem bacharel recém-formado à cidadezinha natal, para viver os conflitos que irão despertá-lo da inexperiência e dos sonhos, até a decisão de partir.

Torna-se instigante a comparação entre Paulo Márcio e dois outros personagens: Lúcio, de A Bagaceira, e Carlos de Melo, em Banguê. Todos bacharéis, de volta para casa, e em crise de afirmação pessoal. No entanto, Lúcio e Carlos de Melo não sabem o que fazer do diploma e se desviam para a terra, numa espécie de fuga. O protagonista de O Quadro-Negro é o bacharel em ação, buscando na ordem jurídica a restauração e a garantia dos direitos.

Essa diferença substancial entre os três personagens permite que se identifique em Paulo Márcio uma transfiguração inovadora, com a redescoberta da tradicional formação bacharelesca, predominante em nossa cultura, numa perspectiva de interferência positiva para o meio social, vislumbrando a prevalência do Direito na solução dos conflitos. Podemos constatar que Lúcio e Carlos de Melo são anti-herois desistentes. Enquanto o personagem criado por Ernani Sátyro é o heroi comprometido com a luta, opondo-se à realidade estagnada da cidadezinha simbolicamente denominada de Lagoa, espaço imaginário do romance.

romance patos paraiba ernani satiro
Fonte: IBGE
Em terra de sapos, Paulo Márcio não fica de cócoras com eles. E é pela ação do jovem bacharel que se estrutura o conflito central do romance. Entre a arbitrariedade da força político-econômica dominante e a justa aplicação da lei, o poder do Direito.

É esse o problema que se desenvolve na representação minimalista de O Quadro-Negro. Problema universal que se reproduz em todas as escalas da chamada sociedade politicamente organizada. Quer se trate de uma cidadezinha do sertão ou da metrópole mais progressista; de um país em desenvolvimento ou de uma potência do considerado primeiro mundo, em qualquer das realidades o Estado
romance patos paraiba ernani satiro
Ernani Sátiro
de Direito é ainda uma miragem ou um projeto sempre em processo de consolidação. Pois em cada instância se vê ameaçado por uma estrutura de poder, com seus coroneis que se colocam, arbitrariamente, acima das leis.

Na estreia como romancista, Ernani Sátyro acumulou considerável fortuna crítica, com a unânime constatação de que não dava continuidade aos grandes regionalistas nordestinos, seguia outra orientação estética. E é verdade. No entanto, a identificação do espaço romanesco com o sertão levou os críticos a uma visão reducionista da temática do romance e de outros elementos estruturantes da narrativa, esquecendo a natureza simbólica que os constitui. Os críticos não se aperceberam de que o sertão existe em todo lugar.

Pressuponho que a percepção estereotipada da realidade sertaneja prejudicou as leituras de O Quadro-Negro, de tal maneira que o conflito central do romance não foi identificado, ou melhor, foi confundido com problemas menores. E personagens marcantes como Adriano Pereira, o juiz, e Maria Augusta, a enigmática e desafiadora namorada de Paulo Márcio,
Uma grande reserva de energia e ação está contida na enganosa passividade, naquele silêncio onde se concentra a convicção abismal da defesa do Direito.
são injustamente subestimados, por certo, em decorrência da falta de análise do romance.

Somente José Lins do Rego identifica em Adriano Pereira "um patético que nos enche os olhos de lágrimas lembrando a cena dramática em que o juiz, desarmado, enfrenta o fuzil de um capitão de polícia, reforçado pelas carabinas dos soldados que apontam para sua cabeça e, tomando as chaves do carcereiro paralisado, abre as portas da cadeia para dar cumprimento a um habeas corpus, que fora rasgado pela suprema arrogância político-partidária.

Onde a deficiência crítica enxerga apenas um juiz preguiçoso, o grande romancista do moderno regionalismo brasileiro descobre o patético, uma categoria do trágico.

E não há dúvida de que Ernani Sátyro construiu essa dimensão para Adriano Pereira, personagem de vital importância na constituição do conflito central de seu romance. Tanto que o protagonista-narrador reconhece no juiz o homem que encarna a única reação possível à brutalidade e à violência.

A difícil missão do magistrado, isolado na comarca distante, cria para o personagem uma aparente rendição. Adriano Pereira quase não fala, recolhido à solidão do seu desamparo. Suportar o peso de ter confundida sua individualidade com a instituição que representa parece esmagar o juiz, consumindo-lhe a vontade e a iniciativa. No entanto, uma grande reserva de energia e ação está contida na enganosa passividade, naquele silêncio onde se concentra a convicção abismal da defesa do Direito.

Adriano Pereira é um personagem-símbolo. A ambiguidade que o constitui não converge para a formação de um caráter, mas para a transfiguração das dificuldades, defeitos e qualidades da complexa prestação jurisdicional. Acompanha-se uma constante e até chocante exposição da morosidade dos seus despachos, mas a grande ênfase é para o gesto definitivo do juiz, que evidencia um compromisso de vida ou morte com a prevalência do Direito, em sua função social insubstituível.

COMENTE, VIA FACEBOOK
COMENTE, VIA GOOGLE
  1. Milfa Araújo Valério8/3/24 00:08

    Agora estou ainda mais encantada com a Professora ngela Bezerra de Castro. Poderosa, na Crítica Literária! Creio que não sobrou nada que a lente dela, construída com muita experiência, não desvelasse nessa obra de Ernani Sátiro. Parabéns é muito pouco para tanto saber! E pensar que essa mulher, reconhecidamente uma grande profissional, se ofereceu para prefaciar meu livro! Devo ter sonhado… Obrigada ao ALCR pela oportunidade de ler um trabalho tão importante, de uma Crítica Literária tão notável!

    ResponderExcluir
  2. Anônimo8/3/24 08:00

    Oportuno resgate do romancista Ernani Sátyro, abafado pelo político situacionista que foi. Compartilho da compreensão de que O Quadro Negro é uma das mais importantes ficções já escritas por autor paraibano, um autor que tem sido injustamente negligenciado até mesmo por seus conterrâneos. Parabéns, professora Ângela, pelo texto valioso. Francisco Gil Messias.

    ResponderExcluir
  3. Parabéns pelo texto! Muitas vezes o julgamento de um autor pelo viés político-ideológico compromete a justa apreciação da sua obra e concorre para que se perpetrem injustiças.

    ResponderExcluir
  4. Obrigada a todos pelos comentários. Assim sabemos que nosso esforço crítico não é em vão .Ângela

    ResponderExcluir

leia também