Faltou luz em dia desta semana e na noite chuvosa não houve lua. E me vi com as mãos atrás da nuca, bem acomodado à rede, o olhar pr...

Um forro velho de lona

recordacoes nostalgia adolescencia cronica gonzaga rodrigues
Faltou luz em dia desta semana e na noite chuvosa não houve lua. E me vi com as mãos atrás da nuca, bem acomodado à rede, o olhar preso a um teto de lona encerada que não é o de meus aposentos nestas noites insones de hoje. Nele repetem-se sombras que figuravam as apreensões de um jovem rapaz que fazia versos de imitação e partia com eles à procura de destino. Como vem de longe isso!

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GD Art
Lembro-me, vivamente. Não precisou sair de onde eu estava, do quarto que herdara com a ausência final de meu pai. O motor da cidade apagara no horário habitual, restando uma sobra de lua clara coada pelas vidraças embaçadas da janela a se projetar no forro do teto, onde a ideia da viagem esboçava suas figurações.

“O que você espera ser ou fazer ficando aqui?! Aqui já deu o que tinha de te dar, um pai analfabeto que gastou o que tinha para manter o filho num colégio de fora” – quase me aberturando, foi o velho Oscar, em cuja loja meu pai tinha cadeira cativa. E toca no que mais me afligia: “Sua mãe, mesmo sem você aqui, não vai ficar sozinha. Fique certo disso.”

Tinha razão o mais acreditado dos nossos amigos. Decorridos três anos de orfandade, interrompidos os estudos no colégio, eu não fizera mais que me entregar à camaradagem com iniciação nos vícios da idade e nalguma leitura de antologia escolar, exceção ao poeta do Eu que vim encontrar algum tempo depois numa antologia de Cretella Júnior lida em voz alta numa roda do café de Joana, que servia cerveja até o motor da luz dar sinal de apagar.

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E abro os olhos na madrugada de agora fixados naquele mesmo forro de lona encerada com as beiras se largando do teto. Com as mesmas nódoas que tinham muito pouco a dizer sobre as dúvidas do meu futuro e a decisão que tomava. Forro debaixo do qual tentara, inocentemente, imitar o soneto do livro de Cretella, assim que meu pai morreu: “Para onde fores, Pai, para onde fores...”

O que sabia fazer para oferecer-me a um jornal da capital, por mais que confiasse na carta de apresentação do vizinho e amigo nosso, homem de espírito, pai de Wills, de Teócrito, irmão do diretor de O Norte, o jornalista José Leal. Minha experiência de trabalho aos 17 anos, dedógrafo na qualificação de eleitor num birô eleitoral e diarista no Censo de 1950, não ia além do eventual.
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Estivera no Recife, encorajado por dois alagoa-novenses da mesma idade, Eugênio e Felix Torres Brasil, que voltavam de férias a seu emprego num restaurante da rua da Palma. Mas não fui além de despachar numa barraca do Mercado São José. Andei por lojas, desde o Cais de Santa Rita, onde fui acolhido pela irmã dos rapazes, bati o comércio central, não indo além de me alistar numa seleção para os quadros futuros da Chesf recém-criada. E vagando pelo porto alistei-me para grumete da Marinha, mas fiquei nisso. E dei as costas a Recife dando graças por conseguir a passagem de volta no trem de Itabaiana.

Foi a primeira viagem de horizonte empoeirado das poucas que empreendi. Até pegar o ônibus da Bonfim, deixar no forro velho as fantasmagorias da descrença em meu passos e apresentar-me, com Anchieta Leal, ao meu primeiro empregador, José Leal Ramos, jornalista, historiador, cujas ideias, por mais conservadoras, não apagam o modelo de homem que sobrevive em nossa gratidão e na nossa memória seletiva.

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