Com uma edição especial, a Academia Paraibana de Letras se integrou às comemorações do centenário do EU , livro que imortalizou Augus...

A travessia de Augusto

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Com uma edição especial, a Academia Paraibana de Letras se integrou às comemorações do centenário do EU, livro que imortalizou Augusto dos Anjos pela singularidade da expressão poética.

Lançado em junho de 1912, o livro condensa a significação maior da existência do poeta, sendo de toda propriedade afirmar que Augusto se impôs o sacrifício extremo para salvar do estreito horizonte provinciano sua criação original e antecipadora de concepções modernas. Tinha a exata consciência de que, sem chegar ao eixo onde se concentrava o prestígio da visibilidade cultural do país, seus poemas dificilmente conquistariam a repercussão nacional a que estavam destinados.

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Sem condições financeiras favoráveis, sem renda certa que lhe garantisse a subsistência, Augusto lançou-se ao desconhecido para uma luta obstinada. Deixou a Paraíba e foi morar no Rio de Janeiro, determinado a sobreviver com a precária remuneração obtida pelas aulas particulares que ministrava. O biógrafo Francisco de Assis Barbosa registra que o poeta “residiu em dez casas de diferentes bairros, quase sempre em quartos de pensão”, durante os anos de permanência no Rio, entre outubro de 1910 e julho de 1914. O escritor José Oiticica, vindo de Minas, compartilhou com Augusto dos Anjos essa fase que classificou de “horrível”, de “penúria”. E revela:

“o que mais o amargurava era a injustiça social em premiar os ruins, dourar as falcatruas, entronar os endinheirados, iludir os honestos, os sonhadores, os retos de entendimento e de coração. Essa revolta íntima o levava a descrer do mundo, a ver em tudo podridão física e moral”.

Parece natural a presunção de que o organismo frágil se debilitou nesse processo de desgaste físico e emocional. De modo que Augusto, já instalado em Leopoldina como diretor do grupo escolar Ribeiro Junqueira, não resistiu a uma pneumonia, deixando a vida com apenas 30 anos, em 12 de novembro de 1914.

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Grupo Escolar Ribeiro Junqueira @leopoldina.mg.gov.br
Nunca mais voltou à Paraíba. Nem mesmo os seus restos mortais. E um documento firmado em cartório pelos filhos Guilherme e Glória proíbe que isso possa acontecer. Os filhos ratificam a decisão altiva do poeta ante a mediocridade burocrática do governador João Machado que ficou na história pelo tratamento estúpido dispensado ao erudito professor Augusto dos Anjos, negando-lhe uma licença para viajar ao Rio e tratar da publicação do EU.

A morte do poeta paraibano teve pouca repercussão na imprensa. Destaque para o artigo de José Américo, no trigésimo dia, e para o ensaio de Antônio Torres, onde se insere o tocante perfil que define Augusto como um idealista “na mais nobre, na mais vibrante e, digamos, na mais dramática acepção do vocábulo”.

A crítica, despreparada para o choque, para o desconhecido que a poesia do EU representava, oscilou inicialmente entre a aceitação e a recusa dos recursos de expressão que caracterizavam a criação lírica sem precedentes. De modo que o livro pelo qual o poeta sacrificou a própria vida permaneceu algum tempo numa espécie de limbo, incompreendido. Nem os modernistas ensimesmados perceberam a poesia predeterminada “Para cantar de preferência o horrível”.

Em 1920, o paraibano Órris Soares, contemporâneo e amigo de Augusto, toma a iniciativa de organizar e prefaciar a segunda edição do EU. Acrescentou novos poemas, selecionados sobretudo entre os escritos após a primeira edição, e colocou o subtítulo (obra completa). Essa publicação paraibana despertou o
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Órris SoaresCC0
interesse da Livraria Castilho, responsável pela terceira edição, em 1928, com o título EU e outras poesias, que se tornou definitivo.

Foi tal o fenômeno da recepção que os jornais da época chegaram a registrar 5500 exemplares vendidos em menos de dois meses ou “3000 volumes escoados em 15 dias”. A partir de então, o sucesso de público não abandonaria jamais a poesia de Augusto dos Anjos. Equiparando-se o poeta aos mais populares do Brasil, recitado de cor pelos admiradores dos mais diferentes níveis culturais. Assim, as edições se sucederam através de selos consagrados: Livraria Castilho, Bedeschi, Livraria São José, Companhia Editora Nacional, José Olympio, Ática, Paz e Terra, Civilização Brasileira, Nova Aguilar, Bertrand Brasil, Martins Fontes, etc. De modo que, em seu centenário, o livro de Augusto ultrapassa as 50 edições.

O prefácio de Órris Soares, Elogio de Augusto dos Anjos, tem acompanhado todas as edições do EU e outras poesias. Apenas em duas edições especiais, Augusto dos Anjos: poesia e prosa e Toda poesia de Augusto dos Anjos, o texto de Órris foi substituído, respectivamente, pelo prefácio de Zeni Campos Reis e pelo insuperável ensaio do poeta Ferreira Gullar.
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Ferreira Gullar Arq. Nacional
Na obra completa, organizada por Alexei Bueno, o prefácio histórico foi apropriadamente deslocado para a Fortuna Crítica.

Sem dúvida, o mais marcante de Órris Soares em relação à poesia de Augusto foi o gesto. A capacidade de compreender antecipadamente que ela representava “riqueza e glória das letras brasileiras”. E a iniciativa de publicá-la, quando o poeta já não existia e parecia tão esquecido quanto seu livro único. Se a expressão exaltada com que tenta caracterizar a poesia parece imprópria à crítica contemporânea, os dois sonetos que ele destaca, O lamento das coisas e Eterna mágoa, são realmente antológicos e refletem a qualidade de sua percepção estética sobre a criação inovadora de Augusto.

A tentativa do professor João Alexandre Barbosa de desqualificar essa edição de 1920 é improcedente e injusta. Órris é enfático ao indagar e responder que o poeta paraibano não se filiou a nenhuma escola literária. Acusá-lo de ser responsável pelo preconceito dos modernistas que “renegaram” Augusto e pelo que chamou de “oficialização” do nível de recepção estética é tão artificioso quanto inaceitável.

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C. Drummond de Andrade
Arq. Nacional
O testemunho de Carlos Drummond de Andrade diz muito do homem que se considerava “um exilado nos livros” e que, segundo o grande poeta, “foi como se ele se exilasse dos próprios livros, para julgar de um planalto infinito e limpo de aparências.” Revelando o homem, Drummond ilumina os valores que o moviam em suas decisões: “Nunca vi o meu amigo Órris Soares fugir à obrigação intelectual da verdade em face de tudo. Foi dos homens mais livres, mais conscientes e mais fiéis à inteligência que já conheci.”

O exercício dessa ética da “obrigação intelectual da verdade” e da “fidelidade à inteligência” levou Órris Soares à publicação póstuma de Augusto dos Anjos, como “uma sagrada dívida” que se impôs. Atitude que, além do registro permanente da História, merece a justiça do reconhecimento e da valorização, por ser um instante definitivo na trajetória do EU. Assim o grande Houaiss compreendeu “a suma importância da segunda edição feita por amor e devoção”.

Hoje é pacífico o entendimento de que a poesia do EU foi consagrada pelo público. Ou Augusto dos Anjos salvo pelo povo, conforme escreveu Fausto Cunha, chegando a afirmar que o poeta paraibano “não deve coisa alguma à crítica literária deste País”. Isto há cinquenta anos, quando o EU começava a receber a atenção especializada de
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Antônio Houaiss ABL
Antônio Houaiss e Francisco de Assis Barbosa, na 29° edição, primeira tentativa de corrigir os erros que se foram acumulando em meio século de publicações. No entanto, somente a 30º edição, com a nota editorial de Houaiss, atingiu a confiabilidade reclamada para o texto poético de Augusto dos Anjos.

Em 1977, Zeni Campos Reis acrescenta, com absoluta segurança, esse cuidado do estabelecimento do texto. Publica Augusto dos Anjos: poesia e prosa, abrangendo, com sua pesquisa exaustiva e competente, a obra completa do poeta do EU, tornando-se fonte de consulta indispensável para os estudiosos.

Enfim, em 1994, com a publicação da obra completa organizada por Alexei Bueno, temos um terceiro texto depurado dos antigos e persistentes erros. Esta sequência de trabalhos criou para as próximas edições uma responsabilidade maior em relação à fidedignidade do texto de Augusto. É o que se percebe no EU e outras poesias – edição especial revista e ampliada, da Bertrand Brasil. E na mais recente edição da Martins Fontes.

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Eduardo Portela ABL
As abordagens de leitura são outro aspecto, na travessia do EU, que exige reflexão. De tal forma que, em 1973, quando o professor Afrânio Coutinho organizou a coletânea Augusto dos Anjos – textos críticos, publicada pelo Instituto Nacional do Livro, o professor Eduardo Portella cunhou a expressão “infortúnio crítico” para salientar o predomínio de “manifestações estereotipadas ou adjetivas”. E conclui que “Augusto dos Anjos continua sendo um desafio crítico”.

Isto porque, muitas vezes, o leitor confunde o Eu poético com a história pessoal do autor. Outras, porque falta ao pretenso leitor a perspectiva histórica e a informação teórica para o enfoque da poesia, ou até mesmo o conhecimento da estrutura poética e de seus recursos expressivos. No entanto, a segunda metade dos anos 70 será de estudos fundamentais para a compreensão crítica da poesia de Augusto e para a justa definição histórica de seu lugar na Literatura Brasileira.

Professor Eduardo Portella ensina, com absoluta precisão, que “Augusto dos Anjos se localiza numa peculiar encruzilhada do pós e do pré, entre elaborações retardatariamente românticas, parnasianas, simbolistas, a essa altura debilitadas, e esboços ou manifestações discursivos, prenúncios do modernismo. O EU se projeta como avatar de radicalização da modernidade.

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Augusto dos Anjos aos 11 anos
@leopoldina.mg.gov.br
Ele desidealizou o conceito do gosto para dessacralizar a linguagem e, com isto, verbalizar despreconceituosamente a experiência humana. A precoce, e não raro prematura, desestetização corresponde ao programa de descarte do sublime.”

Também em 1974 o poeta Ferreira Gullar começava a escrever o denso e completo ensaio Augusto dos Anjos ou morte e vida nordestina. Nele o EU se desvela em toda a sua grandeza histórica e na verdadeira genialidade da dimensão poética. É um estudo incomparável que nenhum leitor de Augusto poderá ignorar.

A cosmo-agonia de Augusto dos Anjos, tese da professora Lúcia Helena, defendida na UFRJ, foi escrita e publicada no mesmo período do ensaio de Ferreira Gullar. Outro gênero de estudo, mas de conclusões convergentes, corrigindo distorções insistentemente repetidas na leitura do EU. Tem continuidade o interesse da crítica universitária pela obra de Augusto dos Anjos. No entanto, falta a divulgação necessária para esta produção de qualidade. Mas ela existe e cresce, resultando em teses defendidas à luz de diferentes postulados teóricos. É um novo padrão de leitura que irá enriquecer a próxima Fortuna Crítica do EU.

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Tamarindo de Augusto (Sítio Pau d'Arco, PB)J@cks
O livro de Augusto chegou ao centenário na plenitude do reconhecimento. Um fenômeno editorial sem termos de comparação. Uma popularidade que levou o autor a ser eleito o paraibano do século XX. Uma diversidade de admiradores que é “transcendentalíssimo mistério”. E uma elevada compreensão crítica que destaca a obra de Augusto dos Anjos “como a mais patética indagação já feita, na poesia brasileira, acerca da existência do mundo e do sentido da vida humana”. Acrescentando ainda que: “jamais, antes dele, essa indagação se fizera em tal nível de urgência existencial e de expressão estética”.

A marca original de conciliar o gosto popular e o erudito não se apagará da poesia de Augusto. Ela continuará encantando o povo e desafiando os críticos.

A sua linguagem fantástica, de palavras misteriosas, estranhas ou íntimas demais, que transita sem limite entre a realidade, a fantasia, o sonho, a loucura e os tempos imemoriais, expandindo-se em ásperos sons, agônicos e dissonantes, fascina e atrairá sempre um público de características culturais extremamente diversificadas. Augusto já é febre entre os internautas, com o registro de seu nome em cerca de 587.000 páginas de acesso.

É a universal grandeza do poeta, prevista em sua iluminada enunciação:

Gozo o prazer que os anos não carcomem De haver trocado a minha forma de homem Pela imortalidade das Ideias.


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  1. Texto sábio e oportuno, com a assinatura de uma crítica de escol. Parabéns, professora Ângela. Francisco Gil Messias.

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  2. Hélder Moura14/3/24 10:50

    Texto notável da professora Ângela. Mais um. É uma aula e um libelo em torno da obra de Augusto. Para ler e guardar.

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  3. Uma beleza, Ângela. Que grata e proveitosa leitura.

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  4. Parabéns Profa. Ângela. Vou reler as poesias de Augusto dos Anjos com uma nova visão. Maria do Carmo.

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  5. Minha reverência,mais uma vez ,a você Angela,amiga de colégio que sempre se destacou pelo amor aos estudos e á verdade cristalina da História. Com extrema lucidez,percorre os caminhos da história crítica das publicações dos escritos,únicos em si,do nosso Augusto.Gratidao por mais uma "grande aula". Restando um abraço carinhoso.
    Luciana Libório.

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