Dedico este texto a Ana Adelaide Peixoto, autoridade no assunto
Obrigado, Virgínia Woolf, pelo título e pela ideia. Mas fique tranquila, cara escritora, nossos quartos e textos são diferentes, os seus muito melhores que os meus, não há dúvida. O seu é um quarto imenso, sem tamanho, posto que simbólico e por isso mesmo atemporal e universal. Mais ainda: é um ideal e, em muitos casos, uma utopia. O meu, aquele da já distante juventude e objeto deste resgate, é modesto, de medidas padronizadas, inserido em cotidiana e datada realidade pequeno-burguesa de um concreto jovem de província, não mais que isso. Uma distância enorme entre ambos, como se vê.
Celyn Kang
Muitas vezes fiquei observando a dinâmica de casas de muitos filhos, um movimento e um barulho intensos, nos quais a individualidade se dissolvia na aglomeração inevitável. E pensava: não seria feliz numa casa assim, por mais feliz que a casa aparente ser. Era gente demais para o meu gosto, um gosto formado e cultivado quase que solitariamente num quarto só meu, numa casa de poucas pessoas. E assim tem sido desde então, para além da casa da infância e juventude, pois continuo sem apreciar multidões. Reflito se foi a tranquila casa paterna que me fez assim ou se assim seria a despeito dela.
Virginia Woolf Lady Ottoline Morrell
Privacidade. É disso que a escritora falava. Recolhimento e solidão, requisitos fundamentais da criação literária e artística. Pois como pensar e escrever na multidão? E aí se junta o outro elemento indispensável: o silêncio. Já que o barulho nunca foi bom conselheiro para ninguém, e é por isso que os povos civilizados o combatem com tanto afinco. No quarto só seu, é de se supor, portanto, que a mulher encontrasse as condições adequadas para escrever. Mas não só isso, claro.
Celyn Kang
Para o jovem (e para qualquer um), o quarto individual é também o lugar de lamber as feridas. A cama é o divã não das palavras enunciadas mas das mudas meditações, aquelas a partir das quais nos recompomos dos baques e desilusões incontornáveis. É o lugar onde nos descobrimos e aos outros, onde o “eu” se defronta com o mundo. Ego e superego interagindo, apalpando-se, diria um psicanalista.
O cinema tem associado com frequência os adolescentes aos seus respectivos quartos. Ali é quase um território proibido para os pais. Geralmente, lugar bagunçado, expressão da rebelde individualidade que o habita, uma individualidade ainda em formação, imaginando saber mais o que não quer do que o que deseja. Os pais batem à porta desses quartos com cautela, receosos até, pois não sabem como serão recebidos os seus chamados. Não é assim?
Virginia Woolf Leonard Woolf.
Lugar do pensar, do refletir, do lembrar e do sofrer, o quarto tem sido tema de muitos poemas e textos outros ao longo do tempo. De fato, o quarto dá pano pras mangas. É um espaço diferenciado no universo da casa. E aqui nem estou incluindo o quarto como alcova, lugar de amar, porque aí é matéria para bibliotecas inteiras. A sala, o corredor, a cozinha e o banheiro, pouco ou nada se tem a dizer sobre eles. Mas o quarto é diferente. Sua atmosfera é outra, mais densa, percebe-se, sente-se.
Pudesse tudo resumir, diria apenas que o quarto é a morada da alma.
PS: Virgínia Woolf poderia ainda ter acrescentado em seu célebre ensaio/conferência que para algumas mulheres outras formas de emancipação são o divórcio e a viuvez. Por coincidência ou mistério (prefiro mais este último), a autora inglesa Vita Sackville-West, contemporânea e amante de Virgínia Woolf, escreveu primoroso romance exatamente sobre a liberdade finalmente conquistada por uma senhora de oitenta e oito anos (!) após a morte do marido, sob cuja sombra esmagadora vivera toda a vida. A obra se chama Toda paixão exaurida, Morro Branco Editora, Rio de Janeiro, 2025. Recomendo.