O sábado é a rosa da semana. As cortinas esvoaçam. Há formigas pela pedra, abelhas no quintal, o vento, a chuva. O sábado é feito para ...

As Sílabas do Sábado

viuvez sabados tragedia superacao mariana salomao
O sábado é a rosa da semana. As cortinas esvoaçam. Há formigas pela pedra, abelhas no quintal, o vento, a chuva. O sábado é feito para não se pensar nele, e nele, e nele está contida toda a promessa de alegria. (Clarice Lispector, crônica publicada nos anos 70).

Porque hoje é sábado, já dizia Vinicius de Moraes no seu célebre poema. O sábado é o tempo do romance. Não fossem As Sílabas do Sábado, de Mariana Salomão Carrara, vencedora do Prêmio São Paulo de Literatura 2023. Fui seduzida pelo belíssimo título, ainda mais quando se sabe que sílabas serão essas. Sílabas que têm ritmo, velocidade e que podem, sim, traçar o destino de alguém, a fronteira entre vida e morte. Sílabas que sibilam, que se aliteram. Quanta poesia!

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Juca Jardelino e Ana Adelaide
Duas mulheres atravessam uma tragédia inusitada. O instante da sílaba! A fratura da vida, do tempo, do espaço e do que possa acontecer num sábado. Um luto longo e renitente; uma personagem que sangra na solidão e na culpa. A culpa de uma sílaba a mais, ou a menos... Doze anos de luto. Uma história de dor, de faltas, da melancolia da ausência, da casa, de uma janela e de suas cortinas. História da amizade entre mulheres. Entre viúvas. Do improvável. Por coincidência, o mesmo tempo da minha perda. Ana do André, eu do Juca. No meu caso, as sílabas não importaram. As palavras, sim. Faltaram muitas. Faltou tempo. Faltou!

Esse romance belo, poético e triste, de pontuação irregular, ou sem pontos nem vírgulas, e que mostra suave e ferozmente o caos interno dos personagens, me fez reviver a minha viuvez. Toda ela é parecida, mas com tantas diferenças. O sumiço da outra pessoa. Vertiginosamente. E, por mais que eu tenha tido 59 dias para processar, foi pouco, para os meus 59 anos. Muito pouco. Para entender que eu não iria mais para a Itália em doze dias, que eu voltaria sozinha para casa e não teria mais o teu corpo por entre os lençóis. E, nesse tempo todo, a gente tenta viver um dia por vez. Inclusive os sábados. Trabalha, sai, vai à praia, dorme, bebe, se acarinha, dorme de novo, chora, chora, chora e chora.

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Juca Jardelino e Ana Adelaide
E dizem que, com o tempo, passa. Mentira! Com o tempo não passa nada. Como se mede a falta? Como se acostumar com a ausência? O nome disso não é só saudade, pois não cabe em nenhuma palavra. Mas a gente se amálgama na saudade. E a pessoa ausente passa a constituir o nosso corpo. O coração. Acionamos o botão da memória e nos confortamos. Inclusive até com o que não deveria ser acionado. A vida! Muitos me perguntavam se eu não iria me casar de novo. E hoje, como entendo as pessoas que se casam imediatamente após. É salutar. Um novo recomeço. Nova família, novos hábitos — “intervalos entre o hábito e a dor” —, novos ritmos e um cenário de nova vida. Não que a anterior seja esquecida, pelo contrário, mas acho que o entusiasmo de um outro cotidiano só acrescenta alegria.

Mas, para se relacionar de novo, é preciso encontrar um amor. Ou paixão. Ou simplesmente alguém com alguma sintonia. Encontros nessa fase da vida não acontecem mais num piscar de olhos. Exigem algo além. E, nesse tempo, todos já temos uma vida escrita: hábitos e fendas intransponíveis. Ah! Os ajustes!

Fui assistir ao filme Amores Materialistas (Direção Celine Song, 2025):

“Lucy é uma casamenteira de Nova York que se vê dividida entre Harry, um empresário romântico e misterioso, e John, um ex-namorado que ainda está tentando equilibrar sua vida, mas desperta uma antiga paixão na mulher.”
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Dakota Johnson, Chris Evans e Pedro Pascal em Amores Materialistas Prime Video
Lendo assim a sinopse, parece fácil. Mas a complexidade do amor vai além. O que nos move diante do coração quando pulsa por alguém? A irracionalidade se faz presente. No caso de Lucy, que só queria um homem com dinheiro e uma vida abastada, logo reconhece que o seu ex a fazia sentir borboletas no estômago. Amor romântico? Quem nunca? E, desde que o mundo é mundo, esse sentimento ainda ronda. Fazer escolhas na idade madura não é fácil. A sua liberdade, saúde mental, disponibilidade, independência, tempo e paz são os assuntos da ordem do dia.

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Mariana Salomão Carrara
Renato Parada
Mas novamente, as sílabas sibilantes. Seja para ecoar uma queda, seja para indicar a atração, seja para ventilar saudades do tempo.

Tenho saudades da minha vida de antes. Aliás, a minha maior saudade: a minha vida de antes. Na minha casa do Bessa, de janelas azuis, com marido e filhos transitando. Comida na mesa. Esperas. Dia movimentado. Dia acalmado. Ninho vazio. Ninho fervilhando aos almoços do sábado e nas datas comemorativas. Um entra e sai. O meu trabalho me consumindo. A falta de tempo. O tempo expandido. O tempo. Tenho saudades muitas.

Mas a vida é hoje. Com sábado. Com sílabas. Com amores materialistas, transcendentais, com luto intermitente. Com o céu que me alumia. E as estrelas das noites lindas. A lua. Sim, a lua é a minha guia. E comer um sapoti no lanche da tarde também. Uma taça de vinho tinto. E me emocionar com a poesia do sábado e das sílabas da vida.

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  1. Anônimo8/9/25 06:28

    Quando se tem sílabas e palavras para expressar os sentimentos, fica mais fácil suportá-los. Você as tem, Ana, e sabe usá-las. Privilégio. Parabéns. Francisco Gil Messias.

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