... Ou como se encantar com as miudezas que nos cercam.
Ela possuía um olhar que incomodava. Não por ser agressivo ou debochado, mas por ser um olhar inquieto, que nunca se contentava com a primeira camada das coisas.
A maioria das pessoas caminhava apressada pelas ruas, verificava celulares, preocupava-se com horários. Ela, ao contrário, encontrava tempo para parar diante de uma árvore qualquer e observar atentamente as rachaduras da casca, as nuances da cor, a sombra que projetava.
GD'Art
Tudo começou numa tarde chuvosa. Caminhava arqueada sob uma sombrinha cinza, sentindo-se mergulhada no desalento. Então, à sua frente, escrito num muro descascado, encontrou a frase:
“Ver o mundo com olhos de espanto é resistir ao tédio, é voar para dentro de si.”
As palavras a intrigaram. Quando conseguiu aprofundar o sentido, percebeu que ali talvez estivesse a chave para sair do marasmo. Decidiu que não limitaria mais seu olhar a um único ponto de vista. Começou a cultivar sua curiosidade, a alegria e a criatividade para se espantar com a beleza das pequenas coisas. Até nos dias cinzentos havia algo a ser revelado.
Ao atravessar a praça, reparou que as poças refletiam o céu como pedaços de vidro líquido. Crianças riam tomando banho de chuva. Um pipoqueiro, protegido por uma enorme sombrinha de praia, espalhava no ar o cheiro delicioso do milho estourando.
GD'Art
Para a maioria das pessoas, aquilo não passava de banalidade. Para ela, no entanto, foi um espetáculo simples e discreto, digno de aplausos silenciosos.
Na manhã seguinte, a caminho do trabalho, viu uma menina parada na calçada, encantada com uma fileira de formigas carregando migalhas maiores que seus próprios corpos.
A menina sorriu ao perceber que ela também observava as formigas. Naquele olhar havia cumplicidade. Acrescentou isso às suas mudanças: passou a enxergar o mundo também com a ingenuidade infantil.
Dentro do escritório, onde o peso da burocracia costumava transformar horas em eternidade, passou a olhar os colegas de outro modo.
Eram homens e mulheres cansados, de gestos lentos e suspiros de insatisfação.
GD'Art
Risadas começaram a surgir e o ambiente, pouco a pouco, tornou-se mais leve.
Seguiu descobrindo novas versões do cotidiano, com mais simpatia pelas pessoas e mais surpresa com as belezas simples.
Lutava contra o tédio que antes a consumia. Agora havia a certeza de que o espanto mantinha sua alma desperta — e isso a fazia feliz.
Em suas orações, pedia:
“Que meus olhos nunca se acostumem. Que eu veja no cotidiano um mistério, um presente, um susto.
Que eu resista ao tédio do automático até o fim.
Que, até nas coisas insignificantes, minha vida floresça com força de eternidade. Amém.”
GD'Art
Miguel de Cervantes, autor de Dom Quixote, resume esse espírito em uma frase que poderia ilustrar este conto:
“Talvez ser prático seja loucura. Abrir mão dos sonhos, isso pode ser loucura. Demasiada sanidade pode ser loucura. E a mais louca de todas: ver a vida como ela é, e não como deveria ser.”