Há uma celeuma no ar. Acredito que sempre houve. Desta feita trazida à tona por uma necessidade dos novos tempos, que a língua ainda não c...

Poeta ou Poetisa?

ambiente de leitura carlos romero cronica conto poesia narrativa pauta cultural literatura paraibana milton marques junior poeta ou poetisa duvidas de portugues preciosismo flezao linguistica

Há uma celeuma no ar. Acredito que sempre houve. Desta feita trazida à tona por uma necessidade dos novos tempos, que a língua ainda não conseguiu acompanhar, nem podemos dizer se vai. Como se sabe, é o uso que faz a língua se tornar linguagem. As mudanças, no entanto, ditadas pelo uso são lentas e vão se acomodando de acordo com as conveniências do uso coletivo. A língua é, sem dúvida, viva e dinâmica, mas a vivacidade e o dinamismo não significam a rapidez que muitos desejam. O poeta Horácio, em sua Arte poética, já nos aponta o uso como senhor absoluto no comando da língua determinando a instauração de novas palavras, termos e expressões, ao mesmo tempo que faz a advertência de usos que cairão no esquecimento. A língua, como um sistema, registra todos, guarda-os, mas só concede a visão da luz do dia àqueles que se empregam pela coletividade.

ambiente de leitura carlos romero cronica conto poesia narrativa pauta cultural literatura paraibana milton marques junior poeta ou poetisa duvidas de portugues preciosismo flezao linguistica
Comparações, 1892 / Sir Lawrence Alma-Tadema

Alguns dias, acompanhei pela internet pessoas se queixando do emprego da palavra “poeta”, para determinar a mulher que escreve poemas, e defendendo, como melhor termo, “poetisa”. Não sei a que vem a queixa. As duas palavras existem, são utilizadas e podem, sem qualquer problema, ser empregadas para a mulher.

No sistema de nossa língua portuguesa, o feminino se faz por flexão. Em linhas gerais, retira-se da palavra a sua vogal temática e anexa-se-lhe a desinência de gênero, quando existe a oposição masculino-feminino. Assim se dá com pato/pata; gato/gata; sobrinho/sobrinha; filho/filha. Procede-se dessa maneira, pelo fato de que o masculino não tem marca de gênero, diz-se não-marcado. Já o feminino, sendo marcado, recebe, por oposição ao masculino, o acréscimo da desinência de gênero, no caso o “-a”. Assim, só podemos ter, na língua portuguesa, um feminino, em relação a um masculino, se houver uma oposição de gênero e uma flexão.

O gramático latino Varrão estabeleceu a diferença entre flexão e derivação, chamando esta de deriuatio uoluntaria e aquela de deriuatio naturalis. Varrão chama a flexão nominal e verbal de derivação natural porque o sistema da língua impõe que se diga “as casas são bonitas” e não “as casa é bonita” ou “as casa são bonita”. Já a derivação é chamada de voluntária, porque nada no sistema da língua obriga a concordância da derivação de uma palavra com as demais na frase. Assim, podemos dizer “o carrão é bonito”, sem que haja uma imposição que nos obrigue a dizer “o carrão é bonitão”.

ambiente de leitura carlos romero cronica conto poesia narrativa pauta cultural literatura paraibana milton marques junior poeta ou poetisa duvidas de portugues preciosismo flezao linguistica
Namoro vão, 1900 / Sir Lawrence Alma-Tadema

No que diz respeito à palavra “poetisa”, não existe aí um feminino de “poeta”, mas uma palavra feminina que guarda uma relação semântica com uma palavra masculina, em cuja relação existe uma derivação e não uma flexão. Se atentarmos para o sistema da língua, o feminino de “poeta” deveria ser “poeta”. De que modo? Ora, a palavra “poeta”, no masculino, é constituída pelo radical “poet-” e pela vogal temática “-a”. Quando dizemos “a poeta”, poderíamos pensar que o “-a” se tornou, automática e inconscientemente, desinência de gênero. O sistema da língua portuguesa permite que se pense dessa maneira.

Vejamos que há o sistema da língua se alimenta também dos costumes sociais. Assim, poeta, tem uma única forma por ser uma atividade essencialmente masculina na sociedade latina. Mesmo que houvesse mulheres fazendo poesia e deveria haver, não se dava a devida importância ao fato, até pelo fato de que a palavra “poeta” designa, na sua origem, o que fabrica, o artesão, o que faz, profissões de homens. Por outro lado, a palavra “sacerdote”, que apresenta, no feminino, a forma “sacerdotisa”, bem que poderia ter como seu feminino “sacerdota”. Na sociedade latina, empregava-se “sacerdos sacerdotis” (radical “sacerdot-”), tanto para homem como para as mulheres, visto que ambos poderiam exercer essa atividade, mas também existia o par opositor “sacerdotia”, descartado pelo uso na nossa língua.

Na realidade, para o uso, pouco importa que se utilize a “poeta”, como flexão, ou a “poetisa”, como derivação. Cada um escolhe a forma que mais lhe convém, com a qual se sente mais à vontade. Ninguém será punido por isso, nem há erro algum em escolher uma das duas formas. O uso, no entanto, num futuro que não poderemos precisar, dirá se o que vai permanecer é a “poeta” ou a “poetisa”.


Milton Marques Júnior é doutor em letras, professor, escritor e membro da APL

COMENTE, VIA FACEBOOK
COMENTE, VIA GOOGLE
  1. Explicado pelo Doutor em letras! fico esclarecido .
    Paulo Roberto Rocha

    ResponderExcluir
  2. Obrigado, Paulo Roberto Rocha!

    ResponderExcluir

leia também