Tempo é moeda rara na vida adulta. Os dias se comprimem entre relógios de ponto, contas a pagar, filhos com febre e metas profissionais...

Maior luxo da maturidade

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Tempo é moeda rara na vida adulta. Os dias se comprimem entre relógios de ponto, contas a pagar, filhos com febre e metas profissionais que insistem em fugir. Nesse turbilhão, há uma coisa que vai ficando encostada no canto da agenda, como um móvel antigo que prometemos restaurar: a amizade.

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Josef Kinzel, S.XIX
Lembro dos tempos de escola e faculdade, quando as amizades brotavam como capim em terreno baldio. Bastava um olhar, um caderno emprestado, uma risada idiota na cantina. Tínhamos horas infinitas em conversas sem rumo, brigas bobas, descobertas compartilhadas. A vida adulta troca a espontaneidade pela logística. Marcar um café exige negociação, digna de tratado, agendas cruzadas, deslocamentos calculados, imprevistos que adiam o encontro por meses.

E, no entanto...

É justamente nessa fase atropelada que a amizade revela seu ouro escondido. Já não se trata de quantas horas passamos juntos, mas da densidade desses minutos roubados à rotina. Um almoço de quarenta minutos pode conter mais verdade do que um fim de semana inteiro na adolescência. Falamos de divórcios, dívidas, sonhos adiados e medos que não ousaríamos confessar em outro lugar. Não há tempo para rodeios, a maturidade nos presenteia com a economia do essencial.

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Josef Kinzel, S.XIX
Os verdadeiros amigos adultos são como estações de abastecimento emocional. Não exigem manutenção diária. Podem ficar semanas em silêncio, mas quando o telefone toca às 2h da manhã porque o mundo desabou ou porque lembraram de uma piada absurda de 2003, lá estão eles. São os que guardam nossas versões anteriores: o jovem inseguro, o sonhador ingênuo, o ser humano antes das cicatrizes. Eles nos devolvem, num olhar ou numa frase, a pessoa que ainda somos por baixo das responsabilidades.

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Josef Kinzel, S.XIX
Há uma beleza triste e sólida nisso: o afeto que sobrevive à escassez. O amigo que aparece no hospital sem ser chamado. A mensagem de voz de cinco minutos só dizendo: “Pensei em você hoje”. A lembrança do seu café favorito trazida numa quarta-feira cinzenta. São gestos pequenos, mas com raízes profundas. 

A vida adulta nos ensina que amizade não é sobre quantidade, mas sobre presença qualificada. É o colo que cabe num emoji bem escolhido. É a resiliência que aceita cancelamentos sem levar
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Josef Kinzel, S.XIX
para o pessoal. É a intimidade que transforma silêncios em conversas.

No fim das contas, cultivar amizades depois dos 30 é um ato de rebeldia. É dizer ao mundo acelerado: “Sim, tenho reuniões e prazos, mas hoje vou salvar uma hora para a minha humanidade”. Porque são esses laços, às vezes desfiados, sempre resistentes, que nos lembram que, por trás do profissional, do pai, do parceiro, do adulto funcional, ainda existe alguém que só precisa de um café, um ouvido e um pouco de gracejo para se sentir inteiro de novo.

E quando a xícara esvazia e o relógio aperta, voltamos para a batalha diária com o coração mais leve. Sabendo que, em algum outro lugar da cidade, alguém guarda nossa história e torce silenciosamente por nós. Isso, talvez, seja o maior luxo da maturidade: ter portos seguros em alto mar.

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