É fascinante pensar que um grande poeta, cronista e pensador como Affonso Romano de Sant´Anna, que deu aulas sobre o romance de minha auto...

Uma obra magnífica

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É fascinante pensar que um grande poeta, cronista e pensador como Affonso Romano de Sant´Anna, que deu aulas sobre o romance de minha autoria "A Verdadeira Estória de Jesus", assistidas pelo nosso Chico Viana, em doutorado no Rio, que leu meu Relato de Prócula enquanto viajava para o Peru, que me estimulou enormemente quando leu meu poema longo "Trigal com Corvos", que vibrou com minhas participações em "O Som ao Redor" e "Era Uma Vez Eu, Verônica", e que até tentou – sem sucesso – conseguir publicação de meus livros na França – escreveu algo como "Barroco – do Quadrado à Elipse" (ed. Rocco, 2000).

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Foi um prazer enorme devorar esse caudaloso, fantástico ensaio de um autor de quem eu já tivera, na poesia, deslumbrâncias com “Catedral de Colônia”, produzida quando ele passou um ano na Alemanha, levado pelo Instituto Goethe. E é ele que me leva agora — pessoalmente, com todos os seus efes de Affonso e enes de Romano e Sant´Anna — fácil como um guia turístico, seguro feito um profeta — para o “centro del colonnato”, no meio da Praça de São Pedro, em Roma, para dali começar a mostrar — in loco — toda a estratégia de representação e de organização do pensamento que produziu os séculos XVII e XVIII e chegou até nós, vivo e atuante como o próprio autor.

Rubens e Velázquez, Aleijadinho e Athayde, Vivaldi, Bach e Padre Maurício, fugas e contrapontos, Niemeyer e Bramante, pedra-sabão e carrara, as anamorfoses e elipses, os labirintos e os montes sacros, a “Passarola” do Padre Gusmão e “O memorial do Convento” de Saramago — em tudo Romano de Sant”Anna dá seu toque revelador, seguro, simples, eruditíssimo. É incrível a desenvoltura com que nos passa os segredos estruturais de “Tutaméia” — de Guimarães Rosa — e do “Avalovara” — de Osman Lins. A precisão com que nos fala da genialidade do Padre Vieira e do rigor de João Cabral de Melo Neto, tornando-os tão curiosos quanto o ocultismo, hermetismo, a cabala, a numerologia, a matemática e a criptografia seiscentista, envolvendo nisso Galileu e Leibnitz, Hermes Trimegistus e Sextus Empiricus. É com surpreendente intimidade que ele discorre sobre a inquisição em Portugal e no Brasil, sobre o Sebastianismo n"Os Sertões" de Euclides da Cunha, no “Deus e o Diabo na Terra do Sol”, de Glauber, e em “Pedra Bonita”, de Zé Lins, da mesma forma como nos mostra as lentes, relógios, espelhos e câmaras escuras influenciando a mentalidade de toda a Europa, e mostrando-nos, de passagem, como a espiral das galáxias entrevista pelos telescópios se disseminou nas volutas arquitetônicas — do Palazzo Zuccari às igrejas de Vila Rica — e nos “trillos” de Rossini e Mozart.

Aí Affonso nos coloca nas primeiras poltronas para assistirmos ao surgimento da ópera, do balé, dos castrati, para ver o que foram as “bachianas” de Villa-lobos, a politonalidade moderna do “Rashomon” de Kurosawa. Mostra-nos, ao mesmo tempo, o teatro extravasando para ruas, praças, para as festas populares, procissões, guerras, exibiu-nos o famoso Triunfo Eucarístico de Ouro Preto e o Círio de Nazaré, coloca-nos na intimidade da retórica da sedução de Madame Rambouillet e do ser e do parecer em Heidegger, Foucault, Derrida e Barthes, com idêntico encantamento levando-nos às tramóias cênicas e trompe-l’oeil do “La Vida es Sueño”, de Calderón de La Barca, voltando-se outra vez para coisas da sensualidade, como a inconstância amorosa no teatro e na ópera
— o quiproquó, o imbróglio, “Don Juan”, a bissexualidade e o transformismo contemporâneos, a superabundância dos banquetes nas cortes européias, a honra que era a de assistir a Luís XIV — o “Rei Sol” — fazendo cocô de manhã — num mundo em que pompas fúnebres e batalhas como espetáculos eram comuns.

No completo, vivo, multifário universo do livro, Affonso Romano se sente igualmente à vontade para pontuar a respeito da arte gorda e da arte magra — de Manoel Botelho e Jorge Amado, Di Cavalcanti e Portinari, Rubens e El Greco — levando-nos à peste na Europa e ao “Triunfo da Morte” de Brueghel, derramando de sua vasta cornucópia, ainda, a clareza que se pode ter sobre a relação do urbanismo barroco e o absolutismo, os miríficos projetos de Nassau no Recife, a mestiçagem estética nos Trópicos, a metarraça de Gilberto Freyre, o criolismo e a antropofagia na América Latina.

É claro que isso tudo tem demais a ver conosco. Como ele nos diz, somos um povo que se debate contra a racionalidade do quadrado e do círculo — marca do classicismo — e que encontra na curva e na elipse do barroco a nossa forma natural e prazerosa de ser. A oportunidade única de se ter um autor cultíssimo e de extrema sensibilidade - como esse — dispondo-se a nos desvendar... a máquina do mundo em que vivemos... é imperdível — para todos.

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