Pode o homem angustiar-se por ter a plenitude do conhecimento livresco? Por outro lado, o conhecimento livresco é suficiente para que nos ...

A angústia do conhecimento

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Pode o homem angustiar-se por ter a plenitude do conhecimento livresco? Por outro lado, o conhecimento livresco é suficiente para que nos conheçamos como seres humanos? Em geral, a angústia de conhecer acontece diante da constatação de que quanto mais adquirimos conhecimento, maior a percepção de que precisamos aprender mais. O conhecimento seria, portanto, inapreensível na sua plenitude, só nos sendo concedido saber uma ínfima parte dele.

O soneto “Vencido”, de Augusto dos Anjos, põe em xeque a eficácia do conhecimento livresco como um modo de nos conhecermos. Esse questionamento se faz a partir de uma compreensão interessante da palavra mito, presente no segundo verso do soneto. No poema, a palavra se desdobra, adquirindo, ao menos, duas dentre as muitas concepções que ela comporta: o mito, como nós conhecemos, em sua maneira mais simples de narrativa envolvendo deuses e heróis, e o mito como mentira, concepção ainda mais comum e mais recorrente. Vejamos o poema:

Vencido
No auge de atordoadora e ávida sanha Leu tudo, desde o mais prístino mito. Por exemplo: o do boi Ápis do Egito Ao velho Niebelungen da Alemanha. Acometido de uma febre estranha Sem o escândalo fônico de um grito, Mergulhou a cabeça no infinito, Arrancou os cabelos na montanha! Desceu depois à gleba mais bastarda, Pondo a áurea insígnia heráldica da farda, À vontade do vômito plebeu... E ao vir-lhe o cuspo diário à boca fria O vencido pensava que cuspia Na célula infeliz de onde nasceu.

O poema apresenta três momentos diferentes: a apreensão do conhecimento, a aflição e desespero diante de sua aquisição, e a decadência do homem, rumo à degradação.

A apreensão do conhecimento se dá no primeiro quarteto, momento em que aparece a concepção desdobrada do mito. Movido por um impulso incontrolável – a “atordoadora e ávida sanha” – o homem joga-se na leitura, atingido o ápice do que se propõe conhecer, após uma incursão que vai desde os mitos mais antigos aos mais recentes. É, então, que a narrativa envolvendo deuses e heróis se mostra em descompasso com a realidade em que o homem vive. O mito se torna mentira ou, pelo menos, em total desacerto com o mundo real.

Os mitos escolhidos para a ilustração desse primeiro momento, do mais antigo – “o do boi Ápis do Egito” –, à velha narrativa alemã dos Niebelungen, não são à toa. O Boi Ápis é uma divindade ligada à força da terra, a encarnação do deus Osíris em forte touro branco e sagrado. Essa divindade não foi apenas cultuada no Egito antigo, mas também pelos gregos, sobretudo depois de Alexandre e dos Ptolomeus, dominando a terra dos faraós. Na Roma antiga, o culto se estendeu nos muitos serapeions, revelando a assimilação do sincretismo greco-egípcio, com o deus Serápis, ora representando Hades, ora os deuses da vegetação, mas sempre presidindo o mundo subterrâneo, tendo em vista que Osíris era, dentre outras atribuições, o julgador das almas. O contato e dominação greco-romana na África do Norte – Cartago (hoje Tunísia) e Egito levaram para essas culturas, esses mitos tomados como os mais antigos conhecidos pelo mundo ocidental greco-romano.

Com relação aos Niebelungen, a escolha recaiu sobre um poema épico da tradição alemã, remontando à Idade Média, século XII, de autoria desconhecida. A Canção dos Nibelungos envolve a saga do herói Siegfried e seu amor por Kriemhild. Essa narrativa popularizou-se com o Romantismo alemão, na sua busca de retorno às tradições, e, em seguida, tornou-se erudita com o seu aproveitamento por Wagner, na ópera, O Anel dos Nibelungos, cuja primeira apresentação se dá em 1876. Nesse último caso, no final do século XIX, o mito encontra-se bem próximo do tempo de escritura do soneto “Vencido” (1909).

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Seja, portanto, o mito uma narrativa primeva, voltada para a origem dos deuses, seja uma narrativa heroica de formação da nacionalidade, a aquisição desse conhecimento, proveniente de uma tradição, revela uma oposição flagrante entre mito e realidade, o que vamos constatar na sequência do poema.

O momento seguinte do poema obedece a uma gradação: o acometimento de uma febre, a impossibilidade de comunicação, o mergulho no infinito, os cabelos arrancados. Tudo revela a aflição e o desespero do ser humano, diante do conhecimento apreendido. O auge da sanha por conhecer nos dá a posição do ser na montanha, após o mergulho no infinito do conhecimento.

Resta ao homem a descida, a decadência, da última parte do soneto, vencido pela aflição de um conhecimento que, ainda que assimilado, não o torna capaz de descobrir quem realmente ele é.
A segunda estrofe se revela, então, inteiramente metafórica, estabelecendo a conexão com a primeira. A febre estranha que acomete o nosso voraz leitor nada mais é do que o resultado atordoador do que se conheceu, resultando numa incapacidade de comunicação – “Sem o escândalo fônico de um grito” – característica recorrente na poesia de Augusto dos Anjos, basta pensar no poema “A Ideia”. O desespero que cerca o homem é reconhecer que o conhecimento adquirido – o mergulho no infinito –, não é suficiente para a sua elevação como um ser divino ou heroico. Mitos ou narrativas são insuficientes para definir o ser humano e saber de sua dor real. Nem todas as leituras possíveis e imagináveis são capazes de realizar esse autoconhecimento, pois o humano é mais do que a soma dos conhecimentos apreendidos. A consciência desse fato resulta no arrancar os cabelos, ao se atingir o auge do que se poderia conhecer através de uma cultura livresca e pronta.

Resta ao homem a descida, a decadência, da última parte do soneto, vencido pela aflição de um conhecimento que, ainda que assimilado, não o torna capaz de descobrir quem realmente ele é. O mito exaltado, entre o divino e o heroico, decai e se degrada. Em lugar do solo sagrado dos deuses ou do solo sagrado do heroísmo pátrio, a “gleba mais bastarda”; em lugar da glória épica, que o mito eleva, o despir-se das honrarias, expondo-as à degradação máxima – “Pondo a áurea insígnia heráldica da farda,/ À vontade do vômito plebeu”.
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Resta-lhe, enfim, reconhecer esse “tropismo ancestral para o infortúnio” (“Monólogo de uma Sombra”), sendo um homem fruto de uma célula infeliz, cuja vileza merece o aviltamento do cuspe. O grande conhecimento se dá exatamente em reconhecer o homem como vencido, como um ser abatido pelo peso da ancestralidade e de suas misérias, que nenhum mito pode escamotear. É, de certo modo, paradoxal: a tentativa de abranger o conhecimento revela o quão nos desconhecemos, pois nos eleva muito acima da degradação em que vivemos atolados. O leitor em agonia, recusando o mito, volta-se para “as desgraças humanas congregadas” a que se refere o eu de “O Poeta do Hediondo”, além de nos trazer um eco do “Filósofo moderno, esse mineiro doido das origens”, ávido de conhecimento material, que se mostra inútil (“Monólogo de uma Sombra”).

Caberia, para finalizar, uma rápida alusão comparativa com o soneto “Vencedor”. Nesse poema, o ser humano é um poeta que aceita o desafio de enfrentar a tradição e dobrá-la, ainda que a reconheça, tomando o mito do gladiador, como uma alegoria para falar da matéria indomável de sua poesia – “ninguém doma o coração de um poeta”. Em “Vencido”, revela-se a oposição entre o mito que exalta e a realidade que degrada. O caminho árduo da descida da nobreza para a plebe e a revelação de degradação moral ligada à genética da célula infeliz, que é o ser humano, desvelando, mais do que a insatisfação, o desconforto do homem consigo mesmo. Em ambos os sonetos, a apresentação de uma matéria de carpintaria poética: é a consciência da degradação que poderá nos redimir.

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  1. Parabéns pela análise, Milton. Apesar de “queimar os neurônios” nos estudos (ou por isso mesmo), o poeta reconhece a insuficiência da instância racional para dar ao homem as respostas que ele procura. A degradação a que você se refere é bem um símbolo dessa incapacidade, que se compensa imaginariamente com a fantasia de outra humanidade.

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    1. Concordo com o seu comentario!!ipsis literis!‼‼
      Paulo Roberto Rocha

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  2. Salvas meu caro Milton.. brilhante texto..simplesmente muito valioso em suas colocações!!
    Parabéns〽️〽️〽️〽️〽️〽️〽️
    Paulo Roberto Rocha

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    1. Mais uma vez,muito obrigado, meu amigo Paulo Roberto!

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  3. Sobre o que disse o Edilson Fernandes, logo acima: Essa frase de Cristo no Getsêmani, que se lê em Marcos 14:34, me lembra um disco que eu trouxe de minhas primeiras férias do BB, lá em Sorocaba, 1963 ou 4, presente para o colega José Bezerra Filho de um colega do Banco do Commercio e Industria de São Paulo – onde eu trabalhara de junho de 61 a junho de 62 – o Sidnei “Sinfônico”: era O Martírio de São Sebastião – Le Martyre de Saint Sébastian, de Debussy, libreto de Gabriele D´Annuncio. Comovia-me ouvir, lá pelas tantas, o maestro e narrador Charles Munch, regendo a Sinfônica de Boston – 1956 – citando-a em francês:
    - Mon âme est triste jusqu’à la mort .
    No esplêndido “Gethsemane” do “Jesus Christ Superstar”, isto vem lindamente versificado:
    - Then, I was inspired. / Now, I´m sad and tired.
    Quantas vezes passamos por isso na vida!

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