Vinte e cinco anos antes de morrer, Beethoven escreveu um pungente testamento. Um retrato de sua existência assinalada por sofrimentos ...

O testamento de Beethoven

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Vinte e cinco anos antes de morrer, Beethoven escreveu um pungente testamento. Um retrato de sua existência assinalada por sofrimentos múltiplos: o alcoolismo do pai, a tuberculose que lhe levou a mãe precocemente, a surdez que avançava sobre ele de forma implacável, aos 32 anos, e lhe roubava definitivamente a alegria da convivência com os homens, soterrando o terno sentimento que carregava dentro de si.

O chamado “Testamento de Heilingenstadt” é uma reflexão solitária, de um homem que se sabe incompreendido, que suplica para não ser mal julgado pelos seus e pela posteridade.
Pontuado pelo desespero, no texto o músico expõe a tragédia de seus dias e revela que somente a Arte o retirou das garras do suicídio.

O testamento é, na verdade, uma carta manuscrita dedicada aos irmãos Caspar Anton Carl e Nicolaus Johann van Beethoven (1776-1848). Ludwig jamais a enviou. Guardou-a numa gaveta da sua escrivaninha em Viena. O documento só foi encontrado após a sua morte.

Quando o escreveu, Beethoven encontrava-se profundamente deprimido e, por recomendação médica, descansava na pequena aldeia de Heilingenstadt, próxima a Viena. A angustiosa luta e o drama de sua vida, expressos na carta jamais enviada, desaguaram na sua Sinfonia número 3, a Eroica, escrita nos dois anos seguintes e originalmente dedicada a Napoleão Bonaparte. Mais tarde, decepcionado com a trajetória do imperador francês, Beethoven negou a dedicatória.

A Sinfonia nº 3 é um milestone. Marco fundamental na transição entre o classicismo e o romantismo, é duas vezes mais longa que as sinfonias de Haydn e Mozart e é, visivelmente, mais emocional do que as sinfonias anteriores de Beethoven.


O segundo movimento, a Marcha Fúnebre, vem envolto em crepes, arrastando lágrimas, carpindo dor e luto. Já o final se eleva, entre a grandiosidade, a consolação e o triunfo. Como alguém que mergulhou em densos abismos de morte e miséria e, mesmo quase afogado, emergiu.

Ave, Ludwig, retirado das águas escuras da morte, os que amam a Música te saúdam.

Eis, na íntegra, o Testamento de Heilingenstadt:

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Ó homens que me enxergais como rancoroso, teimoso e misantropo, como estais errados a meu respeito. Não conheceis as secretas razões que me forçam a parecer deste modo.

Meu coração e minha alma sentiam-se desde a infância inclinados para o terno sentimento de boa vontade e sempre estive disposto a realizar grandes coisas; porém considerai que, há seis anos, vivo sujeito a triste enfermidade, agravada pela ignorância dos médicos.

Iludido constantemente, ano após ano, na esperança de uma melhora, fui forçado a enfrentar a realidade desse mal, cuja cura, se não for de todo impossível, durará talvez anos!

Nascido com um temperamento vivo e ardente, sensível mesmo às diversões da sociedade, vi-me obrigado a isolar-me numa vida solitária. Por vezes, quis colocar-me acima de tudo, mas fui então duramente repelido, pela duplamente triste experiência da minha má audição!

Era-me impossível dizer às pessoas: “Fale mais alto, grite, pois sou surdo”. Ah, como eu poderia admitir uma enfermidade de um sentido que devia ser, em mim, mais perfeito que nos outros; de um sentido que, tempos atrás, foi tão perfeito como poucos homens dedicados à mesma arte possuíam!

Perdoai-me, portanto, se me vedes afastar-me de vós quando eu teria prazer de estar convosco! Meu infortúnio é duplamente penoso, pois, além do mais, faz com que eu seja mal julgado.

Para mim, já não há prazer na reunião dos homens, nem nas conversas refinadas, nem nas trocas de ideias. Só a mais estrita necessidade me arrasta à sociedade. Devo viver sozinho, como um exilado. Se me acerco de um grupo, sinto-me preso de uma pungente angústia, pelo medo que descubram meu triste estado. E assim vivi este meio ano em que passei no campo, aconselhado por meu médico a poupar a audição. Mas que humilhação quando ao meu lado alguém percebia o som longínquo de uma flauta e eu nada ouvia! Ou escutava o canto de um pastor e eu nada escutava!

Esses incidentes levaram-me quase ao desespero e pouco faltou para que, por minhas próprias mãos, eu pusesse fim à minha existência.

Apenas ela, a Arte, me impediu! Pareceu-me impossível deixar o mundo antes de haver produzido tudo o que eu sentia me haver sido confiado, e assim prolonguei esta vida infeliz. Existência verdadeiramente miserável por causa de um corpo tão suscetível, que pode ser jogado, por uma mudança repentina, da melhor condição para a pior.

Paciência, dizem-me, é o que devo escolher agora como meu guia. E já o fiz. Espero que minha determinação permaneça firme e desejo mesmo que seja agradável até que as Parcas inexoráveis cortem o fio (da minha vida). Talvez eu melhore, talvez não! Estou pronto. Aos 28 anos e já obrigado a filosofar não é fácil – e mais penoso ainda se torna para um artista.

Oh, Deus, tu vês a profundidade da minha alma. Sabes que nela habita o amor pela humanidade e o desejo de fazer o bem.

Ó homens! Se um dia lerdes isso, considerai que me julgastes mal! O infeliz se consola quando encontra alguém com uma tragédia semelhante à sua e que, apesar de todas as limitações da natureza, tudo fez para merecer um lugar entre os artistas e entre os homens de bem.

Peço-vos, meus irmãos assim que eu fechar os olhos, se o professor Schmidt ainda for vivo, fazer-lhe em meu nome o pedido de descrever a minha moléstia e juntai a isto que aqui escrevo para que o mundo, depois de minha morte, se reconcilie comigo. Declaro-vos ambos herdeiros de minha pequena fortuna. Reparti-a honestamente e ajudai-vos um ao outro.

O que contra mim fizestes, há muito, bem sabeis, já vos perdoei. A ti, irmão Carl, agradeço as provas de afeto que me deste ultimamente. Meu desejo é que seja a tua vida menos dura e mais livre que a minha.

Recomendai a vossos filhos a virtude. Só ela poderá dar a felicidade, não o dinheiro, digo-vos por experiência própria. Só a virtude me levantou de minha miséria. Só a ela e à minha arte devo não ter terminado a minha vida em suicídio.

Adeus e amem um ao outro. Agradeço a todos os meus amigos, principalmente ao príncipe Lichnowsky e ao professor Schmid. Gostaria que os instrumentos do príncipe L. fossem preservados por um de vós, mas não para ser a causa de conflitos, e se eles puderem vos servir a um propósito melhor, então vendei-os.

Quão feliz ficarei se ainda puder ser útil a vós no meu túmulo – que assim seja. Com alegria, corro para a morte. Se ela vier antes que eu tenha tido a chance de desenvolver todas as minhas capacidades artísticas, terá chegado muito cedo, apesar do meu destino severo. Eu provavelmente desejaria que viesse mais tarde, mas mesmo assim estaria feliz, pois estaria livre de um estado de sofrimento sem fim. Venha quando quiser, eu te encontrarei corajosamente.

Adeus e não me esqueçais inteiramente quando estiver morto. Eu mereço isso de vós, pois durante a minha vida pensei em vós com frequência e em maneiras de fazê-los felizes.

Sede felizes!

Heiligenstadt, 6 de outubro de 1802.



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