Já era tarde. Sem vento algum, a noite emudecera por completo, permitindo apenas ao mar o privilégio de um doce sussurro. De repente, u...

Penas sem culpa

Já era tarde. Sem vento algum, a noite emudecera por completo, permitindo apenas ao mar o privilégio de um doce sussurro. De repente, um barulho lá em baixo. Mas, sob absoluta fleuma e comunhão total com o alentado bem-estar, nada nos encorajava a qualquer averiguação de anormalidade. E assim permanecemos deixando a vida seguir o tempo, sem pressa alguma.

Hora de dormir, fechar as portas, a surpresa estava lá, no meio da sala. Um passarinho desmaiado dava os últimos suspiros. Ao redor, e por todo canto, incontáveis penas, de todos os tamanhos, denunciavam com absoluta clareza a dolosa ocorrência. O instinto felino de nossos gatos, Vivaldi e Rameau, decerto havia-se emergido com uma vítima fatal. Nada a fazer. A não ser, limpar. Resignadamente

L. Rosendo
Ao examinar a vítima, lamentavelmente ferida, a quase imperceptível e surpreendente respiração sinalizava que um tíbio sopro de vida ainda lhe restava. Cuidadosamente o acomodamos entre pedaços de pano, numa caixinha de papelão. As penas, espalhadas pela sala, misturadas à nossa, ficariam para amanhã.

De repente, surgem o prováveis “autores” do estrago - Vivaldi e Rameau. Com as caras mais inocentes do mundo, como se nada tivesse acontecido. Não poderia ser diferente. O irracional é mecânico, puro. Portanto, divino. Como culpá-los?

Todo impulso instintivo não se permite à razão. A ignorância, idem. Assim agem os fanáticos, imediatistas, obtusos, aqueles que ignoram a justiça divina, eximem-se do bem, sem a consciência de um futuro além do que pensam ser a vida.

Por isso que se diz “a quem muito foi dado, muito será pedido”. Aos sábios, que se exijam sejam racionais, prudentes, dignos. Aos rudes e primários, segundo a recomendação cristã, pedem-se indulgência e compreensão. Aos gatinhos, apenas o perdão, “porque eles não sabem o que fazem”…

Antes de dormir, fomos espiar o passarinho. Mas, infelizmente, só havia o corpo. A alma partira. Inocente, sem remorso, sem culpa, igual ao olhar da dupla, sem culpa alguma, pedindo para entrar no quarto...

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  1. História da vida.
    Que segue seus padrões e formas.

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  2. Abri a porta e dei com um dos gatos daqui de casa acuando um alvíssimo pombo já nas últimas. Afastei o agressor, recolhi a vítima, porém - como no seu caso - era tarde. Senti-me péssimo. E também compreendi que a saciedade das rações não eliminara o instinto de matar do felino - embora não houvesse, mais, interesse nesse comer. Me senti péssimo, não imagino por qual culpa assumida, mas culpa.

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