Araruta é uma música de Noel Rosa. Uma das tantas, em que ele expressa a sua genialidade. Parece música com tom de marchinha de carnav...

Meu bem, escuta!

noel rosa mpb carnaval marchinha
Araruta é uma música de Noel Rosa. Uma das tantas, em que ele expressa a sua genialidade. Parece música com tom de marchinha de carnaval ou daquelas debochadas que permeiam a sua obra. As gerações de hoje, em overdose de sertanejos, pancadões e quejandos, não devem saber o que é marchinha de carnaval, festa tomada por outros ritmos, além do frevo, marcha-rancho e da própria marchinha.

A Araruta de Noel Rosa e Orestes Barbosa, de 1932, gravado em 1983, por Carlos Didier, biógrafo de Noel Rosa, segue, no entanto, em outra direção. É música de qualidade. Embora não seja versado nessa arte, sendo apenas um apreciador, achei a música parecida com um ragtime do tempo das melindrosas. Em alguns momentos,
o piano lembrou-me Scott Joplin . Vejamos a letra:

Araruta
Tu pedes Mandando "Faça o favor" a tua boca nunca diz. Tu cedes Negando Com esses olhos que pra mim são dois fuzis. Sou mole, Manhoso, Teus impropérios retribuo com brandura Pois água mole Na pedra dura tanto bate até que fura! Tu beijas Mentindo A tua boca beija e mente sem sentir. Desejas Sorrindo Que o teu perdão humildemente eu vá pedir. Não peço, Espero Ainda ver-te entre lágrimas bem mal. Meu bem, escuta: A araruta tem seu dia de mingau!

Atentemos para a divisão da música em duas partes, cada uma com 4 estrofes, sendo a última estrofe o fecho de cada uma das partes. As três primeiras estrofes se compõem de dois versos dissílabos, combinados a um alexandrino perfeito com a cesura da 6ª sílaba dividindo o verso em dois hemistíquios ou duas metades. A quarta estrofe apresenta uma mudança do ritmo, que não compromete a perfeição com que foi composta, com apenas dois versos, um de quatro sílabas e o alexandrino. Não compromete porque o tetrassílabo substitui perfeitamente os dois dissílabos das estrofes anteriores.

O fecho de cada parte da música encerra informações diferentes, sendo construídos a partir de dois ditados populares, “Água mole em pedra dura, tanto bate até que fura”, formado de dois heptassílabos,
noel rosa mpb carnaval marchinha
Detalhe do quadro "Carnaval nos Arcos", de Heitor dos Prazeres (1960s)
e “Toda araruta tem seu dia de mingau”, um alexandrino perfeito. Este último ditado foi levemente modificado por Noel Rosa para “A araruta tem seu dia de mingau”, o que não interfere no ritmo ou no metro, tendo, porém, uma razão para a mudança, que explicaremos mais adiante.

Vejamos as diferenças que existem nas duas partes da música. Se o leitor acompanhou a letra, que aqui reproduzimos, e se buscou entender o seu sentido, deve ter percebido que a música trata de um relacionamento abusivo, em que um homem se submete aos caprichos de uma mulher. Ressalto que poderia ser o inverso, uma mulher submetida a um homem, conforme podemos ver em Pela Décima Vez , também de Noel Rosa, música de caráter mais contundente, por se tratar de reiteradas agressões físicas à mulher, suportadas como um vício, conforme se entende de sua letra e do seu título.

Voltando a Araruta, a pessoa que se submete à outra toma a atitude de tentar a modificação daquele ou daquela que ama, através da brandura, como resposta aos abusos, aqui designados por “impropérios”. Nesta primeira parte, vemos uma estrutura de contrários que expõem o mais forte submetendo o mais fraco: o que pede mandando; o que cede negando contra o que é mole e manhoso; a pedra dura contra a água mole. A pessoa que ama acredita poder, através da “brandura”, com a paciência da água mole (a pessoa mesma já se denominou de “mole”), modificar a rispidez, a grosseria, a brutalidade do ser amado, cujos olhos são dois fuzis, dito de maneira enfática e sem rodeios. Acredita que, não pela força, mas pela persistência, terminaria por furar a carapaça da pedra dura, como se diz no ditado latino:
noel rosa mpb carnaval marchinha
Heitor dos Prazeres (1960s)
Gutta cavat lapidem, non vi, sed saepe cadendo (A gota cava a pedra, não pela força, mas por frequentemente cair).

A segunda parte da música nos traz uma mensagem diferente de quem sofre o abuso para quem dele abusa. A estrutura de contrários, então, se ratifica, denotando agora falsidade e arrogância: beija mentindo e é tão contumaz que já não sente, uma coisa e outra. Por outro lado, o arrogante exige humildade e ser perdoado por parte de quem ele trata a pontapés. É quando se dá a reviravolta que marca a diferença de informação da primeira para a segunda parte. Não tendo funcionado a persistência da brandura contra a frequência dos impropérios, a pessoa que sofreu abuso muda também sua atitude, já não se encontrando preso ao condicionamento anterior. Não só não mais obedece passivamente, mas, surpreendentemente, anseia por vê-lo “entre lágrimas bem mal”.

A segunda parte da música, portanto, se revela como uma advertência, em que o humilhado chama a atenção de quem o humilha, em uma ironia explícita – “Meu bem, escuta” –, para arrematar com um ditado popular, como fez ao fim da primeira parte. Explica-se aí a modificação operada por Noel Rosa: em lugar de “Toda araruta tem seu dia de mingau”, vemos “A araruta tem seu dia de mingau”. Em primeiro lugar, o indefinido “toda” desaparece para o determinante definido “a”, afirmando não ser toda, mas esta araruta em particular, que terá seu dia de mingau. Em seguida, a mudança do ditado popular permite um hiato

A/ a/ra/ru/ta/TEM/seu/di/a/de/min/gau/,

especificidade que a elisão da forma tradicional tende a encobrir

To/da/ra/ru/ta/TEM/seu/di/a/de/min/gau/.

Conforme já afirmamos, não há modificação do metro ou da rima, ambos são um alexandrino perfeito (veja-se a cesura da sexta sílaba, TEM, coincidindo com o hemistíquio, como exige este verso), mas há uma mudança significativa de sentido, com a acentuação de quem é a araruta a que se refere a pessoa que sofreu abuso.

Embebidos no ritmo da música, dificilmente percebemos que a paciência e a persistência têm data de validade, transmutando-se em advertência de mudança de atitude. Assim, é a vida. Para ficar nos ditos populares, um dia, já tarde, o jacaré percebe que a lagoa secou.

COMENTE, VIA FACEBOOK
COMENTE, VIA GOOGLE

leia também