“As palavras se movem, apenas no tempo; mas o que apenas vive Pode apenas morrer. As palavras após a fala encontram o silêncio” T. E...

O Pôr da Lua

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“As palavras se movem, apenas no tempo; mas o que apenas vive Pode apenas morrer. As palavras após a fala encontram o silêncio”
T. Elliot

Era mais um dia de trabalho. A noite chegou desapercebida, escondida pela cortina da sala, lá fora o tempo corria! A espera do elevador enfrentava a saída simultânea de vários profissionais da área de saúde e clientela. Mas, após um breve aguardo, abriu-se uma porta com uma sorridente ascensorista. Algumas pessoas já presentes, recuaram educadamente para receber o novo afluxo. O silêncio propiciava olhares furtivos, avaliações rápidas, o olho no relógio... Um casal de meia-idade confirmava o próximo horário do dentista, quando ela subitamente quebrou a discrição, como se houvesse lembrado de algo importante:

⏤ Hoje é dia de lua cheia, vamos à praia?

Ao que ele respondeu entre irritado e irônico:

⏤ Só se for o Pôr da lua!!!! ⏤ e repuxou a boca lateralmente com expressão de desdém.

O desconforto da resposta incomodou particularmente uma jovem representante de laboratório que timidamente interveio:

⏤ O senhor não imagina como o luar é belo e faz bem ao coração!

Ele retrucou:

⏤ Não vejo nada demais. ⏤ A moça conscientizou-se de que não conseguiria acrescentar nada de bom àquele homem.

“Quem tem nomes sem ideias, suas palavras carecem de sentido e fala através de sons vazios”.
Locke

Ao chegar ao pavimento térreo, a senhora saiu e a conciliadora também. O agressivo desceria nas garagens inferiores...

O que pensar sobre o curto diálogo assistido? A evidência era clara, o casal já não existia, se desfez há tempos, e a exposição daquela figura feminina publicamente era inadmissível. Ela aparentava ter cinquenta anos, bem cuidada, trazia no rosto traços bonitos, remanescentes da juventude.
“Nós nunca somos tão desamparadamente infelizes como quando perdemos um amor”
Freud
O que os sustentava juntos? Não aparentavam afinidades, e o afeto que um dia existiu perdeu-se entre palavras ásperas e indiferença.

Não havia o cuidado com o outro, o desejo de um não complementava o parceiro. Quando o respeito, que é um dos fundamentais valores humanos desaparece da relação, só a paciência e a fé restam para a solidão a dois. O flash do semáforo apossou-se da atenção dispersa que retornou ao trânsito.

Passados dois meses, a representante chegou para uma visita profissional, e, ao concluir sua apresentação e entrega de amostras, o assunto veio à tona. O que aconteceu quando saíram do elevador? Ah doutora, eu fiquei penalizada com a condição submissa daquela senhora e a convidei para tomar um cafezinho comigo. Ela titubeou e respondeu:

⏤ Mas, eu deveria acompanhá-lo... e, impulsivamente decidiu:

⏤ Vou aceitar sua delicadeza ... E então, tivemos oportunidade de conversar. As palavras saíam atropeladas pela emoção, e falou sobre um casamento que já durava trinta anos, sobre filhos casados, inclusive um que morava no sul. Surpresa com a tolerância da mulher, arrisquei uma pergunta intrusiva:

Priscilla Du Preez
⏤ Por que a senhora continuou nessa história? ⏤ Enquanto os filhos moravam conosco, havia alguma atenção, uma certa deferência, mas depois quando ficamos sós,
“De erro em erro vai-se descobrindo toda verdade”.
Freud
os substantivos comuns foram substituídos por grosserias, rispidez, até com interrupção da minha fala, afastamento e ausência de afeto.

Mas por que não se separou e refez sua vida?

⏤ Um ar de desânimo e uma lágrima furtiva transformaram a face sofrida, quando justificou-se:

“Não faças da tua vida um rascunho, poderás não ter tempo de passá-la a limpo”
Quintana
⏤ Sempre acreditei que o amor bastasse para compensar as carências dele, e no meu romantismo, esperei, esperei, até que desisti de ser feliz.

⏤ E a senhora ainda crê que será possível?

- Levando vagarosamente a xícara aos lábios, confirmou:

- Não, perdi ultimamente os vestígios de esperança que me cegavam. Tento encontrar uma linha de sensibilidade, como hoje por exemplo, a lua propõe renovar o romance do passado...

“Sei que nunca terei o que procuro E que nem sei o que buscar, o que desejo. Mas busco insciente, no silêncio escuro. E pasmo do que sei que não almejo”
Fernando Pessoa
E assim, a conduzi até um táxi, sem antes sugerir que procurasse um suporte terapêutico e não desistisse de sorrir para a vida.

Em seguida, comentamos um pouco sobre o casal e a representante despediu-se emocionada com o relato que fizera.

E, concluindo os atendimentos do dia, receitas pendentes prontas, ar e luzes apagadas, agenda na mão, o elevador abre, e nesse horário, vazio... o percurso tranquilo favorece a lembrança do fato. Como é fácil o caminho para a harmonia, quando nos responsabilizamos por nossas palavras, e isso é o que deveria ter acontecido!

Priscilla Du Preez
Segundo Heiddeger, maturidade é cuidar do que se diz, respeitar o que se escuta e meditar o que se cala! Uma lua cheia traz reflexos prateados clareando a rua, indiferente aos conflitos humanos, reina poderosa, para os que ainda conseguem se encantar e para os que preferem as trevas. E, causa do conflito do casal, o Pôr da lua é ainda mais belo tardiamente... quando todos dormem... o sol espera para nascer, iluminar os recônditos da alma. O Pôr da lua é o despontar do sol.

Quem sabe, uma imagem feminina aguardará na areia da praia, e se dará o direito de sonhar que foi perdido, de viver o que lhe foi desperdiçado? O amor é pródigo em formas e sublimações!

“Duas coisas povoam a mente com uma admiração e respeito sempre novos e crescentes: o céu estrelado e a lei moral dentro de nós”.
I. Kant



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  1. Ângela Bezerra de Castro12/11/22 13:35

    Texto muito bom pelo tanto que obriga o leitor a refletir. Isso diz da densidade do seu conteúdo. E que habilidade em interligar pedaços de conversas e acontecimentos, para construir uma sutil unidade. Parabéns.

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  2. raquelandacosta@gmail.com12/11/22 15:44

    Cara Marluce
    Gostei muito de sua crônica.
    Nela, você nos dá uma visão peculiar dos muito conflitos que no dia a dia as pessoas vivenciam, muitas vezes até publicamente, sem se dar conta de que o diálogo franco ainda é o grande caminho para uma perfeita harmonia e entendimento entre as pessoas.
    Tudo isto tratado com a sensibilidade de um profissional cuja competência lhe permite compreender com carinho os desvãos da alma humana.

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  3. Amei sua crônica Marluce ❤️👏👏👏👏👏e como ela me fez ver tanta coisa ...como me vestiu em varios trechos ... como vc escreve bem , qta sensibilidade . Me fez derramar algumas lágrimas lendo tanta lição de vida sendo dada.... E como muitos insistem em não ver o que está posto .Gratidao

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  4. JOSE MARIO ESPINOLA13/11/22 00:29

    Lí, e gostei, Marluce, pois está muito bem escrito.
    Triste história de um casamento desfeito.
    É a história da maioria dos casamentos das velhas gerações, pois a nova geração não espera tanto tempo para desfazer um casamento. Às vezes resistem apenas à lua de mel.
    A propósito: eu acho que, quando o casamento é cinematográfico, os noivos deveriam assinar um contrato, ANTES do casamento, se comprometendo a ressarcir todas as despesas dos pais, se a separação for inferior a 04 (quatro) anos de casados.
    Parabens, doutora! Revela a união do senso de observação com a capacidade de escrever bem

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  5. Muito bom, Marluce. Na voz da cronista sente-se a terapeuta preocupada em encontrar soluções para os problemas de outros. Obriga-nos a uma oportuna reflexão. Parabéns!

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  6. Jamice Martins
    Bela crônica Marluce,
    Parabéns pela sensibilidade para ver em um pequeno instante, a triste realidade que rodeia um casal que não mais existe. A beleza da lua é ingrediente ativo em um casal que se enamora e ignora-la ou irritar-se com a sua presença tão imponente é, no mínimo, demonstração de pura amargura.

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  7. Mais um texto excelente de uma autora talentosa e sensível, que possui o dom de observar e relatar poeticamente situações que nos passariam desapercebidas.
    Queria que a mulher do texto ouvisse a música Sutil (Itamar Assumpção) e soubesse que merece romance, sim! A vida pode - e deve - ser mais do que um casamento infeliz.
    “Ser feliz é bem possível, a lua cheia me reduz a pedacinhos.”

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