“Nós dançamos para rir, dançamos para chorar, dançamos por loucura, dançamos por medo, dançamos por esperança, dançamos para gritar, nós somos os dançarinos, nós criamos os sonhos.”
Frase atribuída a Albert Einstein, que também era dançarino (aqui e entre as estrelas)
Frase atribuída a Albert Einstein, que também era dançarino (aqui e entre as estrelas)
Ontem assisti a um vídeo de dança das crianças do Masaka Kids Africana, em Uganda. Em cada pequeno rosto havia um sorriso que era estrada de terra banhada de sol. Algo contagioso e bom, impregnado de uma alegria inocente capaz de restaurar a fé perdida no ser humano. Mal sabia que estava eu, mais uma vez, prestes a encostar os lábios na tigela agridoce que oferece simultaneamente a mais excruciante dor e as promessas algo frágeis de uma esperança que se recusa a ser esmagada.
Os vídeos do projeto Masaka Kids Africana viralizaram na internet por causa das crianças sorridentes e de seu talento. Elas cantam, dançam, dublam e riem (muito) em vídeos irresistíveis, com mensagens de amor e felicidade, filmados em um cenário simples, real com casas de adobe, tinas de roupa e cabras da cidade de Masaka. Nas férias escolares e em fins de semana selecionados, treinam as coreografias. Em algumas poucas ocasiões, participam de shows fora da África, no qual são ovacionadas por audiências emocionadas.
Visitei a página do projeto (aqui está ela: clique para visitar) e descobri que as crianças são órfãs. Perderam um ou ambos os pais na sucessão de tragédias que fustiga sem descanso a terra de Uganda.
Masaka KidsDivulgação
Na página do Unicef, os números de Uganda são alarmantes (leia texto abaixo). É em meio a esse cenário bruto que o Masaka Kids Africana oferece abrigo seguro, comida, roupas, educação e cuidados médicos para crianças a partir de dois anos de idade. Organizado inteiramente por voluntários, o projeto se propõe a oferecer formação educacional de boa qualidade e a chance de sustento na vida adulta. Um frágil fio de esperança estendido sobre o abismo aberto pelas circunstâncias.
As crianças acolhidas pelo projeto passaram por algumas das piores experiências que um ser humano pode enfrentar. Dança, música, amor, compaixão e solidariedade as salvaram.
Um universo de pensamentos atravessou minha mente enquanto eu assistia aos vídeos, agora com novos olhos. Não apenas crianças que dançam. Sobreviventes. Os vídeos são o retrato da humanidade e sua capacidade infinita de causar dor, enquanto outra parte estende mãos salvadoras.
A vida é duríssima em geral, mas para alguns de nós a taça de amarguras parece mais ampla, mais funda. Se o mundo é lugar árido por excelência e viver é desafio que se apresenta a cada dia sob diversas roupagens, o que acontece em vastas regiões da África é inaceitável. Obra humana, com assinatura bem visível, é nódoa a nos afrontar. A imensidão de tragédias demonstra de forma indiscutível nossa falha vergonhosa, coletiva, com o continente berço do chamado Homo Sapiens.
Fecho os olhos por alguns segundos em busca de algum conforto para o incômodo que se instala no peito. Nos fones de ouvido ecoa a voz poderosa de Kassé Mady Diabaté (que hoje habita a memória do Mali).
Google Maps
Uma pesquisa na internet me informa que o canal do projeto Masaka Kids Africana no Youtube já arrecadou 1,3 milhão de dólares e que o grupo acumula 6,8 milhões de seguidores no Instagram. Li com alívio as reportagens sobre os títulos de terras comprados pela Fundação em nome de cada uma das crianças acolhidas. Como em Uganda não há escolas públicas e o perfil do projeto nas redes sociais mostra as crianças bem cuidadas e vestidas com uniformes escolares, cumprindo rigorosamente o calendário escolar, presume-se que o dinheiro está sendo bem aplicado no que se propõe: prepará-las adequadamente para o futuro. Não é pouco.
Masaka Kids AfricanaDivulgação
Para o ugandense Onyango-Obbo, as crianças, especialmente as deixadas para trás, como no orfanato Masaka Kids Africana, representam um dos aspectos mais perversos da Uganda pós-guerra.
Charles Onyango-Obbo
O escritor é incisivo ao observar que grupos como o Ghetto Kids e o Masaka Kids Africana, ao brilharem, fazem com que nos sintamos indiciados. “Isso nos enche de tanta culpa e emoções conflitantes que não conseguimos desviar o olhar”. Como acontece com os Yanomamis e toda a infância violada e abandonada mundo afora, bem sabemos. Penso durante algum tempo na frase atribuída a Albert Einstein e que está na webpage do Masaka Kids: dançamos para rir, para chorar e para gritar; dançamos por loucura, por causa do pavor ou porque desejamos desesperadamente ter esperança. Nós, dançarinos vida afora. É exatamente o que as crianças de Masaka disseram à dançarina Karina Palmira: dançamos porque nos faz felizes, porque é a nossa chance de ter uma boa vida; algo que nos cura e faz sonhar.
Como eu disse, agridoce.
Tiro os sapatos e começo a dançar Calm Down (Acalme-se), do nigeriano Rema.
Baby, calm down, calm down...
A música tem ritmo e sotaque africanos. O corpo se move. E percebo, enfim, nascer em mim o pequeno milagre da arte que acende estrelas sobre o pântano dos dias. Eu, assim como tantos outros bailarinos de alma fraturada, criamos sonhos de reerguimento. Um deles se concretizará em Uganda no futuro, em um dia feliz. Acredito nisso. Até lá, segue a vida, com trabalho árduo, paciência, gotas de fé e um coração capaz de dançar em meio às cinzas.
Baby, calm down, calm down...
originalmente publicado em www.soniazaghetto.com