O Brasil não merece os brasileiros... O brasileiro não conhece o Brasil... Quando na cerimônia da XXXI Abertura dos Jogos Olímpicos ...

A Diva e a dívida

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O Brasil não merece os brasileiros... O brasileiro não conhece o Brasil...

Quando na cerimônia da XXXI Abertura dos Jogos Olímpicos de Verão, no Rio de Janeiro, escolheu-se aclamar Larissa de Macedo Machado em detrimento de inúmeras cantoras de fato, tivemos, ali, um crasso exemplo de que o importante no Brasil de hoje é lacrar, fechar, abafar, parecendo ser, e nada mais...

Em 1987 a grande musicista, já aposentada há tempos, Balduína de Oliveira Sayão concedeu uma densa entrevista ao importante radialista e produtor musical Lauro Gomes Pinto. Desse precioso momento, Bidú nos dá muito o que refletir sobre
o estranhíssimo país em que nos encontramos hoje; cada vez mais embrutecido e cada vez menos reconhecedor de seus Talentos. A entrevista é atualíssima e revela tanto a intimidade do entrevistador com a Música quanto a grandeza dessa verdadeira Diva ‘carioca da gema’. Nascida na Praça Tiradentes, num tempo com mais senso social de elegância e de pouco “desenvolvimento”, Bidú fez questão de, durante a entrevista, em vários momentos, ressaltar a impossibilidade de ser mais carioca do que foi. Isso nos leva a pensar sobre a ingratidão de nossa terra, onde resume-se, a empobrecer-nos sobremaneira, o Brasil — e o Rio de Janeiro, centro cultural do país por muito tempo — sempre ao samba, ao futebol, e à objetificação da mulher brasileira. Com o advento da televisão, então, a pouco e pouco, viu-se nascer no Rio de Bidú e noutros rincões, uma massificação que reza a cartilha da leviandade, da programação barata, do besteirol.

De 1987 a 1994, Bidú, que já não era mais um grande nome conhecido por todo o país, — se é que um dia chegou a sê-lo — ficou em sombras de esquecimento até que o carnavalesco paraense, acadêmico, figurinista e cenógrafo Milton Reis da Cunha Júnior resolveu transformá-la em tema para samba-enredo da Beija-Flôr de Nilópolis em 1995. O então jovem Milton Cunha havia ingressado na agremiação em 1994 e já no ano seguinte propôs essa empreitada que coroou Bidú numa tentativa de rememoração em forma de homenagem. O samba-enredo ficou a cargo de Bira, Dequinha Pottiêr, Jorginho, Tião Barbudo e Zé Carlos Do Cavaco; com a interpretação inequívoca de Neguinho da Beija-Flôr. A música está organizada em quatro partes de texto, e as duas centrais possuem um contracanto lírico que deu realce ao desfile na Sapucaí.
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Rio, 1995: Bidú Sayão e Milton Cunha
O nome da homenageada surge na segunda parte, em tom menor, momento de maior expressividade melódica, em cuja estrofe há, também, a referência a duas grandes obras e, por conseguinte, a dois compositores brasileiros: Bachianas Brasileiras do velho Villa, especialmente a quinta, que Bidú gravou, e a ópera O Guarani, de Carlos Gomes:

Bidu Sayão e o Canto de Cristal Bela menina, voz de cristal Deslumbrava multidões O seu talento, dom divinal Encantou os corações Grande guerreira que conquistou Seu lugar ao Sol É festa, é luz, é cor, é poesia É diva internacional! Neste palco surge ela: Bidu Sayão Sacudindo a passarela, quanta emoção! E a minha Beija-Flor, vem aplaudir Bachianas e o Guarani Essa carioca da gema Cultiva a vida inteira O sonho de voltar à pátria E o orgulho de ser brasileira E semeou de norte a sul deste país Seu canto lírico feliz E hoje é musa na Sapucaí O samba é amor, é nessa que eu vou Swinga, minha bateria Tô nesta ópera Extravasando alegria

O texto do samba-enredo é pequeno para dar conta do vulto dessa grande cantora mas trata, resumidamente, da Bidú passada, da menina, do canto leve, soprano-ligeiro, de sua reiteração com a carioquice e a brasileirice que tanto a orgulhavam — ou motivo de tristeza quando alguém dizia-lhe o contrário. Fala de seu talento, como que todo embasado na entrevista que dera ao senhor Lauro,
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como quando da idéia de que dom é mesmo dádiva divinal, que não escolhemos e que por quem nos vocaciona é que fomos e somos escolhidos. Também trata da luta diária, das batalhas de estudante e profissional para ganhar respeito e respaldo, traduzidos na seriedade que a própria Bidú fazia questão de explicitar nas entrevistas, inclusive ao observar que as gerações que a sucedem são menos zelosas quanto à formação musical. Quanto ao semear de sonhos musicais Brasil afora: Bidú fez duas intensas excursões por todo o país a cantar sem cobranças de altos cachês ou grandes estruturas para seus recitais. Contudo, depois de todo esse justo, merecido e desejado extravaso de alegria para a cantora, aposentada há décadas, seu legado é celebrado hoje em dia? Parece-me que malogrou a propaganda carnavalesca ou não passou de uma celebração de “amor-de-carnaval”, fugaz... Nem no próprio sítio eletrônico da agremiação o samba-enredo de 1995 consta na listagem disponível.

E, assim, afinal, fica-nos a pergunta: quem é a diva Balduína de Oliveira Sayão? No Youtube, por exemplo, não há muitas gravações disponíveis, sobretudo em vídeo; ela, quando ativa, era chamada de ‘anti-patriota’ porque não se permitiu mofar no país que denega Artistas mas venera a jogadores de futebol e “estrelas” midiáticas.
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Arq. Nacional
À guisa de respostas, Bidú é muito mais do que se possa supor, mormente, na contemporânea sociedade brasileira anti-artística; essa mesma sociedade que chama de Artista, à invertida, a modelo que posa nua, invés daquele que a pinte ou a esculpa. A eminente senhora Baldúina, assim como Villa-Lobos, de quem era amiga, não deixou filhos; era simples no trato, sem muito auto-alarde, e que exala retidão de caráter, de exemplo a ser seguido, perseguido, por sua alta disciplina, por sua persitência, por sua seriedade: nunca se deixou levar por deslumbramentos fúteis, e tomou a difícil decisão, quando no auge de sua carreira, de deixar os palcos para que houvesse a devida consistência e coerência interpretativas: algo raro já em sua época e, hoje, inexistente.

O Artista precisa saber a hora de parar, de recolher-se, tanto como o tempo certo para aceitar papéis difíceis, mesmo diante de gordos ordenados e vultosos contratos. É que Artista serve à Arte; Músico serve à Música. Não deve, nunca, servir-se dela para se promover gratuitamente, frivolamente. Saber e viver desse sábio proceder é, mais do que nunca, hoje, a mais preponderante das tarefas: nunca tivemos uma conjuntura global tão limitada e limitante pelos olhos, pela configuração exterior, por uma espécie de pacto permanente de mediocridade do qual gerações vão nascendo sob a égide das telas, quando o “normal” é o filtro falacioso, é a máscara, é a maquiagem eletrônica, é a falsa aparência que anula essências.


Logo no início dessa ontológica entrevista concedida ao senhor Lauro surge a frase: “E a minha força de vontade era enorme: eu tinha uma disciplina, eu não ia mais às dálias, eu não queria mais saber de outros divertimentos, a minha idéia fixa era estudar canto para um dia poder cantar”. De cara, dona Bidú deixa evidente que a tarefa do estudante é o labutar, resignadamente, sob ensinamentos de um Mestre — que, aliás, sua primeira professora era uma notável Mestra do canto, de origem romena, a madame Elena Theodorini — e sem tréguas: porque em Arte não há concessões.

Do amigo Germano Romero recebi a frase que aqui faço questão de citar: “A Música é a nossa mais verdadeira Prece.” E é mesmo: “Música é vida interior, e quem a tem jamais padece de solidão” — é o que afirmava, em comunhão com o pensamento de Germano, o finado senador, literato e entusiasta das Artes, Paulo Alberto Artur da Tavola Moretzsonh Monteiro de Barros. Em seu notável programa da TV Senado, Artur da Tavola trazia tanto uma conversa direta com o espectador, cheia de anetodas e algumas informações importantes sobre a música em cada programa, quanto muito dessa vida interior que ele nutria e que se denota da carreira e da pessoa de Bidú Sayão: mulher de valores inegociáveis,
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que soube manter-se íntegra e coerente em décadas de estudos e representações de significativos papeis operísticos.

Denis Allan Daniel, distinto causídico, em 1999, publicou a biografia Bidú: Paixão e Determinação, na qual colaciona fatos sobre sua carreira a partir de críticas recolhidas de vários jornais brasileiros e estrangeiros e depoimentos da contadora e amiga no fim da vida de Bidú para quem ela deixou grande parte da herança. O livro reúne inúmeras fotos e reflete a profunda admiração do autor por sua diva bem conterrânea. A entrevista emblemática concedida a Lauro Gomes é, em seus detalhes, destrinchada no livro. E um dos pontos interessantes que, na entrevista, chama bastante a atenção é a Formação Musical de Bidú: para bem além da idéia superficial que hoje se tem de técnica, o verdadeiro e autêntico métier de Bidú foi construído, solidamente, sob a cátedra de Mestres; ela nunca escolheu repertório, nunca fez o que meramente queria ou gostava, mas o que a sensibilidade desses Artistas exprimia como um devir a que ela deveria submeter-se e precisava aprender. Esse é o segredo — diametralmente oposto da prática de hoje, puramente e perdidamente hedonista —, qual seja o de estudar sem pressa, nem ansiedades e, sobretudo, com a imprescindível humildade estudantil para se achegar à Música, entendendo os limites de seus potenciais.

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O poema The Blessed Damozel de Gabriel Charles Dante Rossetti, britânico filho de imigrantes italianos, chegou às mãos de Claude Debussy em boa tradução para o francês por intermédio de Gabriel Sarrazin que havia traduzido uma coletânia em 1883 “Poètes modernes d’Angleterre”. O resultado é uma cantata para coro feminino, orquestra e duas solistas representando a narradora e a personagem-título. A obra foi concebida entre 1887 e 1888, é dedicada ao colega e conterrâneo Paul Dukas, foi publicada em 1892, revisada a sua orquestração em 1902 e, em 1906, completada a redução para piano. Em 1948 o violinista e regente húngaro Jenõ Blau que, quando da emigração aos Estados Unidos, passou a se chamar, na versão inglesa, por Eugene Ormandy, gravou essa cantata, dirigindo a Orquestra da Philadelphia, com o coro feminino da Universidade da Pennsylvania, sob o preparo de Robert Elmore, a contralto Rosalind Nadell e, ninguém menos que Bidú Sayão, no papel principal.

As estâncias em francês preservam o sentido formal em rimas e assim ficaram:

La Damoiselle Élue
Chœur (Sopranos et Contraltos) La damoiselle élue s'appuyait Sur la barrière d'or du Ciel, Ses yeux étaient plus profonds que l'abîme Des eaux calmes au soir. Elle avait trois lys à la main Et sept étoiles dans les cheveux. Une Récitante Sa robe flottante N'était point ornée de fleurs brodées, Mais d'une rose blanche, présent de Marie, Pour le divin service justement portée ; Ses cheveux qui tombaient le long de ses épaules Étaient jaunes comme le blé mûr. Chœur Autour d'elle des amants Nouvellement réunis, Répétaient pour toujours, entre eux, leurs nouveaux noms d'extase ; Et les âmes, qui montaient à Dieu, Passaient près d'elle comme de fines flammes. Une Récitante Alors, elle s'inclina de nouveau et se pencha En dehors du charme encerclant, Jusqu'à ce que son sein eut échauffé La barrière sur laquelle elle s'appuyait, Et que les lys gisent comme endormis Le long de son bras courbé. Chœur Le soleil avait disparu, la lune annelée Était comme une petite plume Flottant au loin dans l'espace ; et voilà Qu'elle parla à travers l'air calme, Sa voix était pareille à celle des étoiles Lorsqu'elles chantent en chœur. La Damoiselle Élue Je voudrais qu'il fût déjà près de moi, Car il viendra. N'ai-je pas prié dans le ciel ? Sur terre, Seigneur, Seigneur, n'a-t-il pas prié, Deux prières ne sont-elles pas une force parfaite ? Et pourquoi m'effraierais-je ? Lorsqu'autour de sa tête s'attachera l'auréole, Et qu'il aura revêtu sa robe blanche, Je le prendrai par la main et j'irai avec lui Aux sources de lumière, Nous y entrerons comme dans un courant, Et nous nous y baignerons à la face de Dieu. Nous nous reposerons tous deux à l'ombre De ce vivant et mystique arbre, Dans le feuillage secret duquel on sent parfois La présence de la colombe, Pendant que chaque feuille, touchée par ses plumes, Dit son nom distinctement. Tous deux nous chercherons les bosquets Où trône Dame Marie Avec ses cinq servantes, dont les noms Sont cinq douces symphonies : Cécile, Blanchelys, Madeleine, Marguerite et Roselys. Il craindra peut-être, et restera muet, Alors, je poserai ma joue Contre la sienne ; et lui parlerai de notre amour, Sans confusion ni faiblesse, Et la chère Mère approuvera Mon orgueil, et me laissera parler. Elle-même nous amènera la main dans la main À Celui autour duquel toutes les âmes S'agenouillent, les innombrables têtes clair rangées Inclinées, avec leurs auréoles. Et les anges venus à notre rencontre chanteront, S'accompagnant de leurs guitares et de leurs citoles. Alors, je demanderai au Christ Notre Seigneur, Cette grande faveur, pour lui et moi, Seulement de vivre comme autrefois sur terre Dans l'amour, et d'être pour toujours, Comme alors pour un temps, Ensemble, moi et lui. Chœur Elle regarda, prêta l'oreille et dit, D'une voix moins triste que douce: La Damoiselle Élue Tout ceci sera quand il viendra. Chœur Elle se tut. La lumière tressaillit de son côte, remplie D'un fort vol d'anges horizontal. Ses yeux prièrent, elle sourit ; Mais bientôt leur sentier Devint vague dans les sphères distantes. Une Récitante Alors, elle jeta ses bras le long Des barrières d'or. Et posant son visage entre ses mains, Pleura. Chœur Ah, ah

Debussy musica o poema na íntegra e a atmosfera harmônica é de uma fase em que ainda a influência wagneriana é presente: Bidu Sayão - LA DEMOISELLE ÉLUE - Claude Debussy


Bidú, com leveza apuradíssima, entrega-se à personagem. The Blessed Damozel é, possivelmente, o poema mais conhecido de Dante Gabriel Rossetti, assim como o título de sua pintura (em réplica) que ilustra o assunto. O poema foi publicado pela primeira vez em 1850 no jornal The Germ. Rossetti revisou o poema duas vezes e o republicou em 1856, 1870 e 1873. Seu tema tem certa inspiração, intertextual, no poema "O Corvo" de Edgar Allan Poe, com sua representação de um amante sofrendo na Terra pela morte de seu ente querido. Rossetti escolheu representar a situação ao contrário. O poema descreve a Damozel observando seu amante do céu e seu desejo não realizado de seu reencontro celestial. As primeiras quatro estrofes do poema estão inscritas na moldura da pintura. Debussy “pinta” harmonias com arcodes em paralelo, imprime temas com melodias planas e um dos temas é, praticamente, o início da popularíssima canção Asa Branca,
hino nordestino que, por sua estrutura básica, é facilmente encontrada em obras de diversas épocas e estilos. Os dois primeiros compassos apresentam um motivo acórdico nas cordas com arco sob a sequência de Mi menor, Ré menor, Dó maior e Ré menor, quatro acordes, um em cada tempo do compasso quaternário composto que se repetem mais uma vez em dinâmica pianíssimo, com sordina e tempo mui sustentado.

A idéia de sonoridade, como numa estética, em que a criação timbrística, os elementos motívicos e temáticos, todos subordinados a uma espécie de fluido sonoro, plástico, maleável, com urdidura e texturas que nos fazem “sentir” cada nota ou reunião de sons, não em si mesmos, mas como uma pintura, faz com que Debussy se torne uma referência emblemática em seu tempo e para as gerações seguintes. Tive o privilégio de estudar com o professor Jean Didier Guigue que, dentre outros trabalhos, publicou o livro Estética da Sonoridade, cujo subtítulo é justamente a Herança de Debussy na Música para Piano do Século XX. Como o pensamento de Debussy é sistêmico e alternativo ao sentido formal e estruturalista de seus contemporâneos de línguas anglosaxônica e germânica, o professor Didier Guigue, já em sua introdução, traz uma explanação que aqui calha muito bem a respeito dessa cantata da mocidade:

Claude Debussy é geralmente considerado como o fundador de uma “nova estética musical”, na qual a sonoridade se torna, plenamente, uma dimensão da sua escrita, o lugar “onde nasce e flui o movimento próprio ao seu pensamento musical concreto”. Com isso, ele inverteu o modelo dualista em vigor na música até então, em que a sonoridade, pelo viés das técnicas de instrumentação ou de orquestração, intervinha como suporte,
como o vetor de um discurso elaborado previamente por meio da articulação de um material abstrato. Na sua música, ela não é mais “a vestimenta de uma linguagem”, mas, antes, passa a ser “o próprio campo das suas mutações, onde se definem novas relações, desierarquizadas”. Debussy abre o caminho para uma “música dos sons”, que Leigh Landy define como uma “forma de arte onde a unidade de base é o som em vez da nota”.

Se, portanto, já nessa cantata, as notas não são mais uma parte da trama hierárquica, os acordes iniciais não devem ser ouvidos, simplesmente, como encadeamentos, mas, antes, como uma introdução para a entrada do coro em que esses tais acordes se liquezafem em “sonoridades” celestes até o término da primeira sessão que corresponde ao fim da primeira estrofe do coro:

A donzela escolhida inclinou-se Na barreira dourada do Céu, Seus olhos eram mais profundos que o abismo Águas calmas ao entardecer. Ela tinha três lírios na mão E sete estrelas no cabelo.

Para uma idéia ter relevo, é preciso ter outra contrastante que com essa possa contrapor e dialogar: princípio antigo e eficiente. Nisso, o timbre de sopranos e contraltos no coro, especificado, também, entre recitante e personagem-título, são representações que Debussy reforça com os temas que cria, e a dialógica entre coro-solistas ou acordes ora mais em bloco, ora esmiuçados em floreios de impressões que acompanham o texto; ou ainda entre trechos meio recitados e mais líricos. E, nessa profundíssima trama, percebe-se o papel importante e imprescindível dos intérpretes;
não meros executantes, mas artistas que devem mergulhar nesse mar de sons, sonoridades e sentidos, pondo sua mais apurada formação à serviço da Música, sob pena de as performances soarem, no mínimo, monótonas e maçantes se assim não ocorra. Por isso, e entendendo minimamente a obra de Debussy, é que chegamos ao gabarito de Bidú e sua icônica interpretação ao lado do notável Ormandy. A própria palavra técnica é, hoje, em muitas situações, desgastada, assim como banalizada está a palavra artista. Bidú, ao contrário de hoje, põe a sua voz ao sentido da sonoridade debussyana, e cria uma Damoiselle com um timbre que não só articula sílabas mas que se presta ao som próprio, como que num quadro poético em voz e expressão.

Após a longa introdução de 48 compassos, com variações de métrica e sutis mudanças no andamento, surge o coro feminino, mas o timbre escolhido é só uma parte da expressão vocal necessária para o coro: há um espírito alcançado por Robert Elmore, na preparação do coro, do qual se ouve um vibrato celeste, na representação dum som de ninfas, uma articulação própria e bem balanceada entre as integrantes que se dividem a quatro partes. Já nos compassos 49 e 50, o coro, a capela, não entoa meramente acordes (Mi maior e Ré menor), mas a dosagem certa de cada nota componente das tríades, a emergir tom que, com a adição do vibrato próprio, perfigura a sonoridade poética desse coro supra-humano. Nota-se aí que fazer Música não é brincadeira e tampouco basta cantar espontaneamente ou com “garra”: há um devotar-se diário e um preparo para atribuir significado a tudo o que se lê no inscrito entre uma nota e outra.

A entrada da personagem principal é ambientada por um retorno do andamento primeiro, com uma rarefação na densidade da instrumentação, até a entrega do oboé, doce e expressiva, e flauta transversal em pianíssimo, a um andamento lento. A solista emerge de uma pausa geral, um silêncio reverente, com a mesma tônica (mi) da entrada do coro, com os versos:

Eu gostaria que ele já estivesse perto de mim, Porque ele virá.

Há uma noção de fé nos versos, uma esperança, e a interpretação de Bidú, somente nessa singela frase, requer do ouvinte algumas atentas audições para que se aprecie in totum a maciez e a simplicidade com que se ouve, livre e respeitosamente, a personagem, vocalizando, com toda a devida articulação expressiva das consoantes (dr e pr), elocução muito bem pensada em âmbito de oitava, com sentimento reflexivo e solitário. Este primeiro exemplo dá a dimensão da ciência vocal que a senhora dona Bidú possuía e o legado por ela deixado aos que se arvorarem com ardor e sinceridade à Arte do canto belo.

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Vexa, diamentralmente oposta, é o que se tem ouvido hoje, tanto no Brasil de Bidú quanto alhures: seja pela massificação leviana dos produtos sonoros industriais seja da desmusical carreira de muitas vozes que, por falta de bom siso ou de Mestre que os oriente, denegam os potenciais, e se põem ao serviço do orgulho barato e do aplauso fácil.

Que Claude Debussy, Heitor Villa-Lobos, Carlos Gomes, José e João Batista Siqueira, Reginaldo Carvalho, Ilza Nogueira, Camargo Guarnieri, Fructuoso Vianna, Luciano Gallet, Francisco Braga, Francisco Mignone, Marlos Nobre, Edino Krieger, Alberto Nepomuceno, Glauco Velásquez, Sérgio de Vasconcellos-Corrêa, eu próprio e tantos, e tantos, e tantos outros compositores tenham a oportunidade — quiçá ainda em vida para os que vivos estão — de serem profundamente interpretados por vozes artísticas como a da saudosa pequenina gigante Bidú, a dama do belo canto das Américas, verdadeira diva brasileira. Quem sabe um dia, então, paguemos a dívida e honremos os nossos, quem sabe nos conheçamos através dos grandes que dessa terra têm brotado.


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