Em 1987 a grande musicista, já aposentada há tempos, Balduína de Oliveira Sayão concedeu uma densa entrevista ao importante radialista e produtor musical Lauro Gomes Pinto. Desse precioso momento, Bidú nos dá muito o que refletir sobre
O Brasil não merece os brasileiros... O brasileiro não conhece o Brasil... Quando na cerimônia da XXXI Abertura dos Jogos Olímpicos ...
A Diva e a dívida
Em 1987 a grande musicista, já aposentada há tempos, Balduína de Oliveira Sayão concedeu uma densa entrevista ao importante radialista e produtor musical Lauro Gomes Pinto. Desse precioso momento, Bidú nos dá muito o que refletir sobre
De minha janela vejo apodrecer a juventude... De aqui miro, em foco, o cair do corpo sem alma. Sem o ouvir do Belo, o organismo fenec...
Inexcedível dom
Não alcancei Heitor Villa-Lobos; já os irmãos José e João Baptista Siqueira, quando faleceram, ainda era criança vivendo nos arredores ca...
Êh, amigo velho!
Temos a sorte de tê-lo longevo, e, ao longo de suas mais de nove décadas de existência, podemos sorver de sua mente criadora, atuando não só por meio da própria obra, quanto como pelos cargos que exerceu na promoção das artes e dos artistas nacionais. Ele mesmo, dentre muitas homenagens que recebera pela passagem de seu nonagésimo aniversário, relembrou no programa Harmonia da Rede Minas, muito de sua trajetória.
O álbum Edino Krieger entre amigos é produção caseira dedicada com amor à sua esposa Nenem, e aos frutos dessa longa relação de parceria e apoio mútuo. Tem, na apresentação do encarte, palavras de Tim Rescala, notável humorista-compositor que disponibilizou seu estúdio onde se deram parte das gravações:

O próprio Edino refere-se a este álbum como fruto de uma autêntica amizade; os intérpretes são muito próximos da família Krieger, e por vezes, já tocaram, inclusive como estreia, suas obras. O disco vai desde uma Sonata para violino solo (opus 1) feita na adolescência, sob as primeiras orientações de Hans-Joachim Koellreutter, aos seus dezesseis anos; até obras estreadas em Bienais de Música mais recentes, como o ciclo dos Estudos Intervalares. O álbum abre com uma singela peça, Chôro Manhoso, concebido aos vinte e quatro de agosto de 1956, e dedicado a Dinorah Krieger, sua irmã. A versão original é para piano solo e podemos ouvi-la pelas mãos de um intérprete muito conhecido e velho amigo dos Krieger, Miguel Proença .
Na Europa é comum que grandes mestres tenham versões e versões do original de suas peças, transcritas em novas instrumentações; é uma forma de ampliar a percepção, e de que as obras sejam mais conhecidas e compartilhadas por diferentes grupos e intérpretes: quando a música transcende a própria concepção originária. É do pianista mineiro Flávio Augusto, membro do Trio Aquarius, essa e as demais versões em trio (Sonatina e a valsa Nina, também na concepção primeira para piano).
Na valsa Nina, estruturada numa harmonia saudosa, rememorando o espírito seresteiro, cancioneiro, o Trio AquariUs brinda-nos com a leveza que a obra merece: audição despretensiosa e leve, deixando-se levar por onde a memória e o espírito nos conduzirem. Mas, é na obra Trio Tocata que a interação criativa entre os instrumentos, revela uma originalidade da concepção e uma maturidade de uma criação robusta.
O ciclo de seus Estudos Intervalares já em si merece um ensaio analítico exclusivo. Destaco a mimetização do mecânico, do maquinal presente nos estudos Das segundas e Das terças, com ritmo frenético em cachos de notas que mais parecem sintetizadas: idéias que se contrapõem e se ratificam a partir de trinados ou arpejos vagos e ressonantes. Já harmonizações comuns no jazz se ouvem no estudo Das quartas, sem que se perca um coerente motorizado canto indígena, relembrando novamente Villa-Lobos. Ou o pulsar de uma citação em ritmo de maracatu no Das quintas. E também o baião sem baixo fixo, no Das sextas, repleto de referências. De cantadores, como numa moda ou toada de viola do Centro-oeste, ou do ritmo bem nordestino com contorno modal, à valsa opus 64 nº. 2 de Chopin, em dó sustenido menor, numa intertextualidade bem humorada, misturada a partir desse que foi o intervalo eleito no século XIX como o mais romântico no repertório, sobretudo pianístico.
O Nordeste de sua amada Nenem também se faz presente no Das sétimas, e o baião, dessa vez, bem autêntico quanto à marcação, é pulsado numa melodia simples e gingada, e com o incremento das sétimas arpejadas. Edino é mais Edino no Das oitavas, quando elabora um ritmo de mãos alternadas que progride cromaticamente e se encerra vibrante e viril: traço presente em diversas de suas obras. O Das nonas resume os anteriores no que de simbólico ou arquetípico o ciclo contém.
Instrumento primeiro de seu Edino é o violino. Não por outro motivo decidiu escrever uma Sonata solo em seu opus inaugural. É peça dedicada ao seu pai, músico que o conduziu nos primeiros passos da vida e da lida musical. A simplicidade de seu Edino o impede de reconhecer o valor para além da aprendizagem das formas barrocas. A interpretação é do mineiro Ricardo Amado que satisfaz o compositor, tendo sido o próprio violinista a sugerir a inclusão dessa obra histórica sobre a qual se pode traçar toda a trajetória criativa de seu Edino, até a mais recente, de que tive o privilégio de colaborar, honrosamente, na edição.
Por isso, diante de sua produção rica e diversa, mas de uma coesão admirável, além desse álbum, permito-me ainda falar de uma obra cuja vivacidade composicional é de um orgulho nacional como poucos feitos na atualidade: o Concerto Duplo para violões e cordas com arco [Edino Krieger: Concerto for two guitars & string orchestra]. Edino se congraça numa tradição perpetrada por grandes nomes nacionais como Camargo Guarnieri, Francisco Mignone, os irmãos Siqueira; além de Osvaldo Lacerda, Marlos Nobre e o próprio Villa-Lobos e Guerra-Peixe. Ou ainda estrangeiros radicados no Brasil, como Ernst Widmer que foram felizes no uso sistemático dos contornos modais eclesiásticos, já com seus jargões nossos, dessas referências da rica região nordestina, muitas vezes, tutelada pelo sudeste. É como se Edino vestisse a couraça de vaqueiro e o chapéu que o caracterize como um sertanejo-catarinense, numa caatinga imaginária em seu coração e mente criadora. Mesmo assim, Edino se mantém simples, como um velho amigo do Brasil, em suas idéias (perdoem-me o saudosismo no acento...) que são tão ricas a ponto da obra poder-se estender por mais tempo, e Edino, no entanto, decide encerrar com simplicidade e sinceridade: marcas de personalidade inconfundível.
É lamentável que programas icónicos da televisão brasileira, como o Roda-Viva, por exemplo, nunca tenham pautado entrevistas com nomes da música como Mozart Camargo Guarnieri, José Siqueira, Francisco Mignone, Jamary Oliveira ou Edino Krieger. Ouçam Edino, ouçam o Brasil que há em seu Edino, ouçam-no em inteligência e perspicácia musical! Ouçamo-nos através de suas obras: é esse nosso dever enquanto diletantes, amantes das Artes, e percebamo-nos como apreciadores sinceros dessa nossa Arte própria, por meio desses nossos grandes referenciais.
O calendarium eclesiástico luterano reúne diversos eventos litúrgicos dentre os quais o nascimento do Redentor é reiterado, relembrado e ...
O Cântico de Gabriel
Em tempos pandêmicos, mais do que nunca, nos é escassa e imprescindível a existência de referenciais. Flui, nos países da América Latina, ...
De alma lavada!
Até onde pode ir a ruindade humana? ... Há vezes que estranhamos sobremaneira a indiferença, a incompetência moral e a covardia enquanto c...
Música é a resposta
A ruidosa contemporaneidade e suas vicissitudes tutelam a criação de muitos artistas. O reconhecimento do próprio punho, a manu propria ,...
Redemoinho musical
Tocar piano não é mesmo nada simples ou fácil; mui penoso é o estudo, requer árduo esforço e perseverança inabalável. Quanto mais estudamo...
Ingrata memória
Tocar piano não é mesmo nada simples ou fácil; mui penoso é o estudo, requer árduo esforço e perseverança inabalável. Quanto mais estudamos, mais nos damos conta do nobilíssimo mister, do dominar a Arte de tocar esse instrumento que sobrepuja a escrita musical desde sua criação por volta de 1711, pelo italiano Bartolomeo Cristofori di Francesco.
Viveu cabalísticos sessenta e dois anos: francês que chacoalhou a vida musical de seu país, Hector Berlioz nasceu no início do século XIX....
Fantástico Troiano
Viveu cabalísticos sessenta e dois anos: francês que chacoalhou a vida musical de seu país, Hector Berlioz nasceu no início do século XIX. Lembrando-me aqui de meu admirado professor Didier Jean Georges Guigue que, durante a graduação, apresentou-me seu conterrâneo de forma mais íntima e esmiuçada do que dele já conhecera até então. Um pesquisador do timbre, das instrumentações, seu livro sobre orquestração – tempos depois, revisado e ampliado por Richard Strauss, que com sua obra, muito aprendeu – é marco original até hoje.
Não é mesmo nada fácil escrever sobre amigos quando se pretende uma avaliação isenta. Por outro lado, sabemos que com os verdadeiros amigos...
No caminho da música
Não é mesmo nada fácil escrever sobre amigos quando se pretende uma avaliação isenta. Por outro lado, sabemos que com os verdadeiros amigos deve-se cultivar a sinceridade e a boa crítica, porque se trata de um olhar carinhoso com o único objetivo de melhorar, ou, pelo menos, contribuir com o aprimoramento de quem temos estima. Arvoro-me nessa empreitada a falar, desta vez, sobre álbum de grande amiga potiguar-estadunidense.
A voz é o instrumento primeiro, mais natural, de expressão primordial de onde parte toda a articulação para os instrumentos externos ao cor...
Vozes paraibanas
A voz é o instrumento primeiro, mais natural, de expressão primordial de onde parte toda a articulação para os instrumentos externos ao corpo humano. Não é à toa, então, que durante séculos a música centro-europeia fundou-se em obras essencialmente vocais. Não é um instrumento fácil quando se quer, sobretudo, usá-lo para o serviço artístico.
Decerto o inquieto e producente Arthur Kösztler viveu o conceito que emulou e a que denominou “the oceanic feeling” (o oceano de sentiment...
O estudo do Mistério
Decerto o inquieto e producente Arthur Kösztler viveu o conceito que emulou e a que denominou “the oceanic feeling” (o oceano de sentimentos). Köstler (como grafava sua mãe vienense) era judeu, tendo incorporado toda a mística hebraica, e experienciado estados alterados de consciência seja no uso de drogas como LSD, seja pelo que relata em seu trabalho autobiográfico "The Invisible Writing", onde a mística o alcançou no cárcere. Esses homens, dados à vivência intensa e à experimentação, fazendo de suas mentes e corpos cobaias do sentir e do pensar, são forte influência para os artistas, sobretudo quando publicam com tamanha riqueza de detalhes e arte mesmo no escrever.
Imagine-se numa eletrizante excursão na Bavária alpestre, pelas lentes de um drone, de uma madrugada ao anoitecer, guiado por uma grande ob...
Uma viagem sinfônica
Imagine-se numa eletrizante excursão na Bavária alpestre, pelas lentes de um drone, de uma madrugada ao anoitecer, guiado por uma grande obra musical; assim é o Opus 64 de Richard Georg Strauss. Ao convite irrecusável orbitam algumas informações sobre seu criador, a obra em si e os desdobramentos dessa aventura que impressiona pela pujança e emotividade.

Espirituoso, Richard, sim, teve descomunal trabalho, muito embora tenha tido uma verve criadora e facilidade no compor que sequer requeria aproximar-se do piano durante seu processo composicional. Mas o trabalho deveu-se à intrincada trama de relacionamento temático, além das alusões imagéticas, baseadas numa viagem que fizera aos alpes bávaros, aos seus quatorze anos, e, ainda, nos recursos timbrísticos muito ricos que desprendeu na instrumentação, sem perder de vista uma orientação filosófica nietzscheriana. Para ainda mais adensar essa urdidura sinfônica, ele a faz como uma espécie de conto fantástico, façanha alpinista de um adolescente – ou de suas lembranças – reunida ao respeito que nutria por Mahler e sua obra: diversas são as alusões à música mahleriana e seu peculiar estilo.
Tal como Franz Liszt, – que criou sinfonias, poemas sinfônicos e sonatas em formas unas e cíclicas – Strauss concebeu Ein Alpensinfonie como um romance imagético-musical, ou conto orquestral. Os vinte e dois títulos são guias para o ouvinte, representações visuais que se desdobram, sem pausas, num cenário montanhesco de impressões que o compositor reuniu: Noite, Nascer do Sol, Ascensão, Entrada na Floresta, Vagueando junto ao Ribeiro, Na Cascata, Aparição, Sobre Prados Floridos, Na Pastagem Alpina, Perdendo-se por entre o Bosque Denso e a Mateira, No Glaciar, Instantes Perigosos, No Cume, Visão, Aumento do Nevoeiro, O Sol encobre-se a pouco e pouco, Elegia, Calma antes da Tempestade, Trovoada e Tempestade, Descida, Pôr-do-sol, Final e Noite.
A obra inicia e finaliza-se com a noite fazendo-nos atentar para o fechamento de um ciclo natural com tempo próprio, dado pelas montanhas, suas sombras e espantosas belezas. Também, noutro perceber, a filosofia que há na própria apreensão desses pulsos naturais de recorrência. O intelectual Antônio Houaiss – que nasceu apenas treze dias antes da estreia de Ein Alpensinfonie – define o verbo perceber como uma tomada de consciência por meio dos sentidos; um conhecimento por intuição ou perspicácia. Compreender, então, esse mundo sinfônico, – tanto literal das imagens não só Richard, mas de todos os que às montanhas alpinas forem, como das referências composicionais que direcionaram, por exemplo, as relações motívicas com os conceitos de Nietzsche emprenhados em Strauss – tem como condição sine qua non essa ‘tomada de consciência’ das capacidades cógnitas straussianas. Compreensão musical que não se dará apenas em nível de performance, ou seja, do desempenho de intérpretes, mas, aqui, toma um sentido amplo e irrestrito: a contenção em nós do fenômeno, de suas articulações timbrísticas e discursivas, e de seu poder expressivo e referencial, seja por criadores, executantes e ainda quaisquer outros ouvintes.

A madrugada vai se movimentando para o amanhecer e os primeiros dilúculos (Sonnenaufgang), que se irrompem por sobre a cordilheira gelada, explodem na orquestração que é sempre cheia. Após os irradiantes fachos de luz dá-se a ascensão imperiosa do sol (Der Anstieg) que soa enérgica, acentuada, quase marcial: um intenso despertar. À poesia da natureza é incrementada a curiosidade humana de explorar o entorno e surge a misteriosa floresta; como um narrador em primeira pessoa, a música nos faz adentrá-la (Eintritt in den Wald). Antes da floresta propriamente, há recurso já bem conhecido porém numa dimensão ampliada cujo efeito é magnífico: doze trompas, dois trompetes e dois trombones longe do alcance de visão (fora do palco) a anunciar uma altruística empreitada de caça, a encorajar.
Na floresta a música reporta-nos para um caminhar pensativo ao lado de um curso d’água: a destreza de Strauss é de uma simplicidade e criatividade tal que só os grandes possuem; ele põe, lado a lado, dois grupos rítmicos, um mais melódico e outro em notas bem curtas e sinuosas como uma corredeira que brota e segue. A corrente de água vai tomando forma e desemboca numa cachoeira (Am Wasserfall) que primeiro é pressentida, ouvida a queda d’água, e depois, vista (Erscheinung).


Para os filósofos franceses Félix Guattari e Gilles Deleuze, há um devenir impopular no enredo do livro Ratman’s Notebooks (bestseller de 1...
A filosofia das trilhas sonoras
Para os filósofos franceses Félix Guattari e Gilles Deleuze, há um devenir impopular no enredo do livro Ratman’s Notebooks (bestseller de 1968) escrito por Stephen Gilbert, e que é base para o filme Willard (1971). Esse filme, que só conheci pela indicação dos filósofos constante no livro ‘MIL PLATÔS, Capitalismo e Esquizofrenia’, é dirigido por Daniel Mann, e tem no papel principal o ator norte-americano Bruce Davison, quando ainda tinha um quarto de século de vida.

Uma força inegável que realça e reinterpreta a narrativa do livro – e que pode explicar, em parte, essa “impopularidade popular” – é a música trilhada nos filmes. Na primeira montagem, adaptação para o cinema logo três anos após o lançamento do livro, temos a música de Alex North (1910-1991) que, desde a abertura do filme, com créditos e cena inicial
A música tem o primeiro corte justamente quando o carro do anti-herói, por assim dizer, o chefe da empresa, sa vci da fábrica e assusta Willard freando bruscamente quase que em cima dele. Essa sincronia de eventos da música que prepara, antecipa, refere, e alude a afetos e emoções é recurso não só do mundo cinematográfico, mas, advém de muito antes, já das obras incidentais e cerimoniais de tempos imemoriais.
North, para fazer um trocadilho com seu próprio nome, dá um “norte” à trama do filme que, apesar de estar rotulado no gênero terror, suaviza-se e ganha mais envolvimento com uma música criativa e interessante. Aos ratos, que saem da condição de intrusos num casarão tradicional norte-americano, passando a verdadeiros donos, ao fim do filme, são associados efeitos sonoro-temáticos próprios, de ritmo, timbres e arabescos rápidos ou gestos lentos a depender da intenção que se quis provocar no espectador.

Como dar sequência a uma pitoresca estória como esta? No ano seguinte, Ben ganha seu próprio filme, suplantando a própria ênfase do livro no personagem Willard: “quando Willard se finda, Ben emerge, e ele não está só”, diziam as campanhas publicitárias de lançamento. Aliás, caberia aqui a expressão de pergunta sobre a coragem ou bravura que Willard não teve e que se viu no ‘gabiru-herói’: és um homem ou um rato?...

Seja um “devir-animal”, – numa lembrança bem desenredada dos filósofos, com conceitos demasiado densos para que os traga aqui sem esmiuçá-los – seja a análise do discurso feita pelo profícuo e inteligentíssimo teórico literário canadense Northrop Frye, que emula a relação entre ritual, como “pré-consciente e animal”, e mito, como “consciente e humano”; tanto o livro, quanto os filmes, com a imaginativa e expressiva música, têm forma para bem além dos gêneros: uma criação arquetípica que releva nossa relação íntima com o mundo dos símbolos do qual a música é parte.

Voltanto à França de Guattari e Deleuze, Giacchino compõe a canção Le Festin que encerra o filme de modo altruísta, fazendo-nos respirar fundo, arrepiar de vontade em rodopiar nessa canção em valsa no estilo tradicional das ruas da cidade-luz, com o acordeão bem característico, e na interpretação da cantora parisiense Camille Dalmais.
Camile possui um timbre escolhido a dedo, tão suficientemente leve, agudo e nasal que se pode associar a Rémy, personagem principal, na felicidade da inauguração do restaurante La Ratatouille, em que ele é a estrela.
Ratos ou homens, rituais e mitos, em todos manifesta-se esse saber, ora alquímico, ora prático e objetivo: a música envolve, ambienta, serve à narrativa ou dela se serve para imprimir e afetar por meio de intrincadas tramas de subjetividade e simbolismo. Creio que mesmo transcendente à criatividade humana, a música, posto que manifesta em som, é em nós e através de nós.
“De certa forma, o trabalho de um crítico é fácil. Arriscamo-nos pouco; sim, gozamos com superioridade a posição sobre aqueles que nos subm...
Flautas e flores
“De certa forma, o trabalho de um crítico é fácil. Arriscamo-nos pouco; sim, gozamos com superioridade a posição sobre aqueles que nos submetem seu trabalho e reputação”. Assim inicia Monsieur Anton Ego, pitoresco personagem crítico-gastronômico, seu esperado editorial sobre o restaurante Gusteau’s no filme de animação – bem mais interessante do que se imagina... – Ratatouille, lançado pela Pixar Animation Studios, em 2007. Estas palavras não me saem da lembrança, não só porque esse filme é carregado de arquétipos e lições subjacentes aos símbolos do ‘gosto’ (ou do “augusto gosto”, que dá nome ao chefe do restaurante), e do ‘ego’, representado pelo crítico, narrado na inconfundível voz do consagrado e saudoso Peter O'Toole (1932 — 2013); mas também, porque este final me afeta profunda e diretamente.
Anicius Manlius Torquatus Severinus Boethius – os registros históricos são imprecisos sobre seu nascimento; provavelmente entre 470 e 480,...
Limiares da música
Anicius Manlius Torquatus Severinus Boethius – os registros históricos são imprecisos sobre seu nascimento; provavelmente entre 470 e 480, possivelmente em Roma, como a maioria defende. Morreu em 524, ao que se acredita, em Pavia, lugar onde repousa seus restos mortais, na basílica de San Pietro in Ciel d'Oro – em seu tratado De Institutione Musica, escrito entre os anos 515 e 520, obra, portanto, de sua maturidade, relaciona a música à conduta ética assim como ao raciocínio puro.
Gentil-homem de conhecimento admirável, catedrático brasileiro respeitado em terras germânicas e de personalidade rara em dias atuais: assi...
Personalidade rara
Gentil-homem de conhecimento admirável, catedrático brasileiro respeitado em terras germânicas e de personalidade rara em dias atuais: assim é o pianista Marco Antonio de Almeida, paranaense, nascido na cidade de Londrina.
O homem sempre foi observador e, por conseguinte, apreciador de tudo que o cerca. A fauna e a flora, meio de sustento e subsistênc...
Da observação à Arte
O homem sempre foi observador e, por conseguinte, apreciador de tudo que o cerca. A fauna e a flora, meio de sustento e subsistência são, ao mesmo tempo, fontes de inspiração. Há, no Evangelho segundo Mateus, admoestação aos que se preocupam com o vestir, por meio de um elogio à natureza: “Considerai como crescem os lírios do campo [...] nem Salomão, em toda sua glória se vestiu como qualquer deles” (Mateus 6: 28-29).
Apesar de, no momento em que vivemos, a apreciação do que nos está à volta não ser prática comum, e termos, cada vez menos, tempo para contemplações – haja vista o modo paradoxal com que tratamos a natureza (queimadas, extinção de espécimes, desmatamentos, etc.), temos uma relação intensa, no plano artístico, com o meio ambiente.

O artista – esteja ele em quaisquer que sejam as áreas de atuação – vê de modo transcendente a realidade, transcrevendo-a em sua arte, por meio de associações ou puros recortes do que vivemos. Uma pintura ou uma escultura, mesmo que pretendam retratar, assim como a fotografia, deformam, transformam e transcendem a realidade pela observação interpretativa. A percepção do artista, neste sentido, se torna mais aguçada e, a cada instante, ele tende a reparar mais no que está à sua volta.
Os questionamentos de filósofos e cientistas, por um lado, são maneiras de observação que não implicam, necessariamente, em conclusões imediatas; o artista, por outro lado, transcreve para sua obra, de maneira literal ou não, a realidade; e sua arte, em muitos aspectos, já se constitui numa resposta mediata, mesmo que não esteja conscientemente baseada em nenhuma teoria, porque, dizia Rubem Alves, "é do desejo que surge a música, a literatura, a pintura, a religião, a ciência e tudo o que se poderia denominar criatividade”.
Os poetas, com toda sua simbologia, imprimem, com palavras, emoções às suas observações. João da Cruz e Sousa assim se referiu acerca de sentimentos próprios no poema Beijos: “Dentro de mim se projeta a luz cambiante dos prismas e batem asas as cismas qual passarada irrequieta”.
O músico, por semelhante modo, comunga dessa vivência de observações e transcrições, pondo em música, sob fortes associações, o seu contexto: natural e cultural. Assim, vemos como a elaboração musical pode estar diretamente relacionada com a observância do meio.

Existem vários graus de associação paisagística de pássaros à música, desde canção em homenagem a um pássaro significativo, ou mesmo sagrado de uma civilização (sem recursos onomatopaicos), até a inclusão em música de um registro fidedigno de seu canto, por meio de um espectógrafo. A paisagem sonora pode ser composta da “fauna” e da “flora” em volta do foco que se quer musicar. Os pássaros foram, em muitas ocasiões, focados dessa maneira, e seu habitat funciona, em alguns momentos na história da música, como acompanhamento paisagístico-sonoro (por exemplo, em Olivier Messiaen).
Seja pelo seu canto ou pelo que representam em determinadas culturas (um mito, por exemplo), as aves têm inspirado obras diversas e multifacetadas: de caráter épico, heróico, lírico ou mesmo patético e pastoral. As técnicas composicionais utilizadas ao longo do tempo para a referência aos pássaros são muitas, em função da relação associativa, ou da transcrição.
Berry Witherden, em resenha crítica do CD Anjos e Visitações, acredita que a maioria dos ouvintes, mesmo que nada saibam sobre o finlandês a quem muito admiro, Einojuhani Rautavaara, vão associar a sua música a paisagens árticas ao ouvirem sua orquestração clara, suas harmonias ásperas, suas melodias “cheias de suspiros e vibrações”. Segundo o autor, o próprio Rautavaara não somente endossou as palavras do romancista Milan Kundera, como também, tomou-as para si, quando este comparou a música sinfônica a ‘uma viagem por um mundo sem fronteiras’.
Percebo que a institucionalização exclusiva do fazer ou do produzir da arte, empobrece-a sobremaneira, hoje. O Artista precisa ser. Preci...
A Arte há de ser sincera

Percebo que a institucionalização exclusiva do fazer ou do produzir da arte, empobrece-a sobremaneira, hoje.
O Artista precisa ser. Precisa expressar-se em seu âmago, em sua sinceridade ainda que idiossincrática.
Quando a instituição toma para si a tutela da obra, subordina o Artista que, pouco a pouco vai se tornando minúsculo.
Os concursos, como já dizia Bèla Bartòk, são competições para cavalos, não para Artistas.
Em nome de necessidades empregatícias, o Artista vira artista, e a Arte (des)arte, apequenada por circunstâncias burocráticas e de uma pseudo e forçosa comparatividade inexistente para o foro íntimo de quem se expressa e busca expressar-se…
O Artista é autêntico quando se entrega ao seu que-dizer próprio, quando sua voz interior fala e o seu âmago se faz ouvir.
Do contrário não há Arte sincera.