DIREITO, MORAL, ÉTICA E DEONTOLOGIA
O Direito, a Moral, a Ética e a Deontologia estão interligados, mas representam diferentes aspectos das normas e valores que regem o comportamento humano. É necessário compreender o fio que os une e as especificidades que os diferenciam para que cada cumpra bem o seu papel.
1.1 A HETERONOMIA COMO ÂMBITO DO DIREITO E DA MORAL
O Direito e a Moral se assentam na Heteronomia, ou seja, na ação humana sequestrada ou tolhida por uma força maior, seja ela social ou legal.
Immanuel KantWilliam Hogarth
A Moral define aquilo que é socialmente admitido. Refere-se ao modo como alguém deve se comportar em público, por constrangimento ou obrigação, para não ser objeto de censura nem de repreensão por parte dos membros de uma comunidade. Ela é influenciada por valores culturais e religiosos, e varia de região para região e de uma época para outra.
Algo pode ser considerado moralmente admissível numa época e em outra não. Pode ser tido como "correto" num determinado local e em outro, não, dependendo da cultura de cada região e de cada povo.
A moralidade está relacionada às práticas e aos atos que são aceitos ou desaprovados, referindo-se aos costumes, regras e normas que regulam o comportamento das pessoas em uma determinada sociedade ou grupo específico. As questões morais consideradas mais sensíveis costumam ser codificadas em leis, ingressando na dimensão propriamente jurídica.
William Hogarth
O Direito, através do Estado, institui o conjunto de leis que regem a sociedade, regulando-a, ordenando as condutas individuais, protegendo os direitos, impondo os deveres, resolvendo os conflitos e promovendo a justiça, segundo o conceito convencionado pela sociedade que o produziu. Sob a perspectiva jurídica, as leis têm a função de garantir a ordem social, segundo o que é reputado como moralmente desejável.
1.2 A AUTONOMIA COMO FUNDAMENTO DA ÉTICA
A esfera da Ética é distinta daquela na qual estão situados o Direito e a Moral, pois ela se baseia na livre adesão da vontade, e se reporta primeiramente aos princípios fundamentais que procuram guiar o comportamento humano de acordo com padrões de conduta considerados como ideais e paradigmáticos.
Para Kant, Autonomia significa a capacidade moral e racional que uma pessoa possui de agir de conformidade com princípios que ela mesma reconhece
Immanuel KantBekir İSlam
Kant resume a capacidade racional de agir eticamente no que chamou de "Imperativo Categórico", que consiste num princípio de ação derivado da Razão Pura e que é universalmente válido. O Imperativo Categórico, tal qual concebido por Kant, exige que cada ação sempre possa ser convertida em uma lei universal sem gerar nenhum mal ou prejuízo aos outros.
Kant enfatiza a importância da Autonomia na tomada de decisões, pois, segundo ele, as ações éticas devem se orientar por princípios racionais que se aplicam igualmente a todos.
SócratesFszalai
Se por um lado, a Ética só pode surgir da liberdade, por outro, a verdadeira liberdade, baseada no bom uso da razão, envolve a capacidade de fazer boas escolhas, alinhadas com o bem comum. De modo análogo, a liberdade, mal direcionada, ou irracional, resultará em ações equivocadas e prejudiciais, para cada um e para todos.
O pensamento bem orientado sempre produzirá a Ética. Corretamente aplicado, o raciocínio nos permite discernir os princípios universais que podem conduzir os indivíduos à virtude, à justiça e ao bem-estar. Só a Ética conduz à plena realização da natureza humana, que não pode ocorrer no mal nem no egoísmo. É possível que o termo "Ética" tenha sido utilizado pela primeira vez no ano 340 a.C., na Obra "Ética a Nicômaco", de autoria do filósofo macedônico Aristóteles, com um significado muito claro e específico: uma investigação sistemática acerca das questões relacionadas à virtude, à moralidade e sobre o que é considerado um bom comportamento, e como os indivíduos podem alcançar a felicidade através da prática do bem.
William Hogarth
A Ética investiga quais são os valores mais viáveis e recomendáveis para orientar o comportamento humano, indo além das leis estabelecidas e das convenções sociais, e avaliando quais posturas podem ser consideradas mais benéficas e menos maléficas em relação ao ser humano e ao ambiente onde ele está situado, com vistas a uma convivência mais justa e harmoniosa.
O agir ético não necessita de vigilância, regulamentação ou coação externas, pois só é possível como um critério próprio, interior e auto imposto. É uma obediência ao que não é obrigatório, nem em sentido social e nem em sentido legal. É uma observância a um limite livremente escolhido. Baseia-se em valores universais e aplicáveis em todo tempo e lugar, porque, ou se age de modo ético em toda parte, ou não se age em canto nenhum.
No agir ético, o interesse comum se sobrepõe ao individual. Quando a Ética não está presente, faz-se necessária uma grande quantidade de leis, que especifique uma enormidade de infrações, pois, se uma só for esquecida, é logo cometida.
William Hogarth
A Moral e o Direito deveriam sempre se pautar pela Ética para balizar seus critérios de julgamento. Contudo, até que uma sociedade se aproxime do que é realmente proveitoso, favorável e vantajoso para todos, e não apenas para alguns, muitas atitudes éticas podem ser consideradas impopulares ou até mesmo ilegais.
A Moral e o Direto estabelecem parâmetros exteriores de julgamento, na elaboração de regras para o convívio social. A Ética, entretanto, posiciona-se de modo diverso, fornecendo princípios para o direcionamento axiológico da sociedade e para a preparação de códigos legais, além de servir como farol para o comportamento individual, ao buscar identificar virtudes cardeais que podem inspirar e orientar o comportamento de cada um. É uma ferramenta valiosa para a autoavaliação, para o autoconhecimento e para o melhoramento do próprio caráter. Não se presta a julgar os outros.
Julgar e condenar os outros é incongruente com o princípio ético da humildade.
William Hogarth
O ensinamento de Jesus, presente em Mateus 12:13, sugere uma separação entre os critérios de avaliação legais e os subjetivos. "Daí a César o que é de César" implica discernir os temas concernentes ao Estado, que se referem à normatização de uma ampla gama de assuntos e de áreas, para garantir o funcionamento ordenado da sociedade, daqueles outros temas mais pessoais, que dizem respeito ao modo como nos relacionamos com questões pessoais e como tratamos aqueles que estão mais próximos.
Transpor todo conteúdo presente nos vários níveis do ordenamento jurídico para o convívio pessoal, significa resvalar num acentuado legalismo, num engessamento das relações humanas, que também foi advertido por Jesus em II Coríntios 2:3: "A letra mata, o Espírito vivifica".
O Estado, a sociedade e as corporações profissionais estabelecem obrigações cívicas, responsabilidades sociais e procedimentos de julgamento e
William Hogarth
Não atrapalhar é o nível básico da Ética. Auxiliar, é o avançado.
Só a conduta de uma pessoa, no contato com os outros, manifesta realmente o que ela é. Num contexto religioso, e sob a moral vigente num lugar assim, é possível simular um comportamento compatível com a expectativa dominante. Porém, se o indivíduo for considerado em suas interações em todos os ambientes que frequenta, o seu modo de agir revelará exatamente os valores que adota.
Com a visibilidade proporcionada, em tempo real, pelas novas tecnologias, a privacidade de todos está exposta, seja voluntariamente, através de postagens narcisistas nas redes digitais e mídias eletrônicas, seja involuntariamente, através dos vazamentos de flagrantes comprometedores, oriundos de equipamentos cada vez menores e mais discretos. Talvez, em breve, a privacidade completa até se torne inviável, ou acessível, apenas, a quem puder pagar muito caro por ela.
William Hogarth
As demonstrações públicas de grosseria e de estupidez facilitadas pelas plataformas de compartilhamento de vídeos e por outras mídias, potencializam a escolha da segunda opção.
Um dos efeitos da publicidade e popularidade dos maus exemplos é a contaminação psíquica que ocasiona a sua reprodução. O desejo de se adaptar, de pertencer a um grupo e de se harmonizar com a comunidade, é inerente ao ser humano. Contudo, esta característica da condição humana costuma se voltar contra ela mesma, quando as pessoas sentem o desejo de se amoldar cegamente ao que é popular.
Nem todos os critérios morais adotados coletivamente são eticamente recomendáveis, havendo situações, inclusive, nas quais a moral social vigente pode estar em total desacordo com a Ética. A virtude não está em se adaptar, mas sim em adotar uma postura respeitosa socialmente sustentável, o que, às vezes, só é possível com uma razoável capacidade crítica que lhe permita resistir a eventual influência tóxica e a pressão social exercida pelo seu entorno.
William Hogarth
A propaganda baseada em tal estratégia é tão eficiente que somente consciências críticas amadurecidas conseguem resistir a ela.
Numa época que exige uma forte interação, mesmo que virtual, para o alcance do êxito social, o apelo de pertencimento a uma comunidade tornou-se quase irresistível. É muito fácil ceder a um chamado desse tipo. Porém, corresponder à influência de uma sociedade ou de grupos dominados por padrões destrutivos pode ser devastador para o caráter individual.
Em Mateus 16:26 está dito: "Pois que aproveita ao homem, se ganhar o mundo inteiro, e perder a sua alma?" Seguir a maioria, a moda, a tendência, dando as costas aos princípios éticos mais basilares, tão durante apreendidos através da experiência ensinada pela história humana, pode levar a graves consequências, tanto sociais quanto pessoais, levando o indivíduo a descaracterizar a sua própria personalidade.
William Hogarth
Controlar o impulso de se amoldar ao que é popular é um grande desafio para quem tem cuidados éticos. A Ética depende mais dos exemplos do que dos discursos, pois todo o seu esforço teórico se destina a respaldar a ação concreta. Se ela não existir, toda a sua diligência conceitual terá sido infrutífera.
Sem testemunho, a Ética não existe.
Como ninguém é obrigado é ser ético, o adepto da Ética carrega a grande responsabilidade de demonstrar, em seus atos, que ela é possível.
A Moral e o Direito podem se orientar de modo equivocado e destrutivo, se a Ética neles estiver ausente. Podem, portanto, existir morais danosas e leis opressivas. Contudo, uma "ética ruim" é uma contradição em termos. É como dizer "bondade má", "humildade vaidosa" ou "tranquilidade atormentada". O agir ético é necessariamente sustentável e benevolente. Uma conotação negativa ou pejorativa só pode ser atribuída ao termo Ética entre aspas, indicando ironia ou sarcasmo. Ética é sinônimo de cuidado com a felicidade do outro, de atitude virtuosa, de preocupação em ser melhor. Para se referir a ações ou comportamentos injustos, errados e prejudiciais, a palavra correta é antiética.
1.3 A ÉTICA COMO PAR METRO MORAL, LEGAL E DEONTOLÓGICO
William Hogarth
O Direito não é apenas uma técnica, mas, sobretudo, uma aspiração. Para garantir a equidade e a ordem social, como se propõe, ele precisa ser justo. A Justiça, no entanto, não é um conceito institucional, mas sim uma busca filosófica. Sem um modelo paradigmático de Justiça para estabelecer a equidade na sociedade, o Direito se extravia e se converte apenas numa ferramenta burocrática de incorreção e opressão. Suas normas têm de ser justas e corresponder à perseguição sincera de um ideal de equilíbrio social. Porém, para tanto, o Direito deve refletir a Ética, à maneira da lua, que reflete a luz solar para poder brilhar.
A Deontologia se concentra no estudo dos deveres, das obrigações e dos princípios legais que guiam a conduta de indivíduos ou grupos em suas ações, estabelecendo diretrizes éticas para a produção de códigos normativos. É um campo limítrofe entre a Ética e o Direito, pois, embora investigue os valores que devem inspirar o comportamento profissional, também considera aspectos jurídicos. Em seu viés filosófico, a deontologia ajuda a moldar os princípios éticos que devem nortear a confecção de regras profissionais.
William Hogarth
Apesar do Direito se referir a um sistema de regulamentos estabelecidos pelo Estado para disciplinar o comportamento de todos, e os códigos deontológicos se aplicarem apenas a condutas profissionais específicas, em seu manejo e aplicação, os manuais de conduta assumem uma conotação mais jurídica do que ética, pois enfatizam, menos as diretrizes éticas e mais as responsabilidades profissionais, os procedimentos e as sanções legais.
William Hogarth
A Deontologia, como parte da Ética, pondera acerca de dilemas morais, escrúpulos profissionais e sobre a adoção de atitudes mais altruístas. Já os Códigos Deontológicos promovem a conformidade com padrões normativos e alinhamentos corporativos, ainda que alegadamente "éticos". Consistem, principalmente, em regulamentos, inclusive com previsão de sanções no caso de seu descumprimento. Portanto, são mais jurídicos do que éticos, em seu manejo e aplicação.
Embora imprescindíveis, estes compêndios de prescrições comportamentais se situam mais no âmbito do Direito do que no da Filosofia.
Na Deontologia, a Ética atua diretamente no esforço de investigação e de fundamentação, enquanto o Direito no de aplicação das normas e disciplinamento. A semântica exige que uma definição se relacione com o seu significado. A presença do termo "Ética" num contexto predominantemente legal é incoerente com o seu próprio significado e também com o objeto que se pretende conceituar.
William Hogarth
Sem um atento exame ético, os Códigos Deontológicos podem até mesmo adotar normas antiéticas, o que pode ocorrer devido a interferência de interesses corporativos unilaterais, conveniências políticas individuais, interpretações subjetivas, influências culturais ou mudanças no comportamento social. Por isso, tanto a preparação quanto a revisão dos códigos de conduta têm de ser presididas por uma intensa perspectiva ética, que garanta a projeção do interesse social e coletivo acima dos individuais e corporativos, alinhando a produção de tais manuais de conduta com os melhores valores e princípios, como exige a Deontologia.
Sem dúvida, o apuro do texto legal e o seu cumprimento devem ser preocupações deontológicas constantes, não obstante o testemunho ético esteja para muito além de meramente cumprir um protocolo, implicando, sobretudo, no compromisso individual de aprimorar o próprio caráter, desdobrando-se no esforço de promover o máximo de empatia, compaixão e respeito em relação aos outros; o que significa tentar se imaginar no lugar do outro e daquilo que ele experimenta, apoiando-o e demonstrando o máximo de consideração e simpatia em todas as interações sociais, para contribuir positivamente com a felicidade da comunidade e do ambiente circundante.
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“Homem nenhum é uma ilha”, disse o escritor e monge trapista norte-americano Thomas Merton. Ninguém existe somente para si. É necessário se conectar às demandas e carências dos outros e do mundo. Compartilhar as próprias experiências e recursos, e contribuir para a melhoria das condições de vida dos outros, é o que traz significado à presença humana nesse mundo.
1.4 BIOÉTICA: O CÓDIGO DA VIDA
A Bioética costuma ser chamada de "ética da vida" por se concentrar nas questões éticas e morais diretamente relacionadas à vida humana, à vida animal e ao meio ambiente em todos contextos relacionados à saúde, à medicina, às ciências biológicas e à tecnologia.
O termo "Bioética" reflete diretamente o escopo da disciplina, pois se refere à vida e a busca da conduta mais apropriada em relação a ela.
A Ética considera a vida como um valor fundamental. Qualquer sistema legal ou moral que não repute a vida como algo que deve ser defendido e preservado não pode ser considerado como ético. Baseando-se na vida como axioma, a Bioética procura fornecer elementos para lançar luz acerca dos diversos interesses envolvidos nos problemas por ela comtemplados. Os problemas bioéticos dizem respeito às complexidades morais inerentes à preservação, promoção e respeito pela vida em todas as suas manifestações, considerando o bem-estar e os direitos de todos os seres vivos.
William Hogarth
Devido ao que se propõe, a Bioética engloba contribuições e competências da filosofia, da medicina, da biologia e do direito, além de outras disciplinas, abordando problemas e tópicos que não podem ser compreendidos ou resolvidos, de modo satisfatório, através de uma única abordagem.
A apreciação interdisciplinar, por contar com a colaboração e com a troca de ideias entre diferentes campos do conhecimento, é fundamental para o correto entendimento dos problemas bioéticos. As questões multifacetadas abordadas exigem uma compreensão complexa, completa e profunda que só pode ser alcançada por um esforço científico feito em cooperação. Por essa razão, a promoção do diálogo entre profissionais da saúde, cientistas, filósofos, juristas, teólogos e o público em geral, é essencial para se chegar a um melhor entendimento sobre as questões morais complexas que constantemente se impõem devido ao avanço da ciência.
William Hogarth
Entre as questões moralmente sensíveis e desafiadoras manejadas pela Bioética estão a experimentação em seres humanos e em animais, a manipulação genética, a clonagem, o transplante de órgãos, a morte, os direitos dos animais não-humanos e a saúde pública.
Ao se debruçar sobre esses desafios e dilemas, o esforço bioético de investigação vai fornecendo parâmetros para a tomada de decisões mais embasadas e responsáveis, levando em consideração os valores e os princípios éticos fundamentais.
William Hogarth
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O episódio emblemático é o de Tuskegee, nos Estados Unidos, ocorrido entre 1932 e 1979, acerca de Experimentos em Seres Humanos. Durante 40 anos, um estudo realizado pelo Serviço de Saúde Pública dos EUA acompanhava a progressão da sífilis em um grupo de homens afro-americanos. Os participantes não foram informados sobre sua condição e não receberam tratamento adequado, mesmo após a descoberta da penicilina como tratamento eficaz. Esse caso levantou questões sobre a ética da pesquisa médica e o tratamento adequado dos participantes.
No episódio do Bebê Clonado, no Reino Unido, em 2002, a Bioética debate o problema da clonagem de seres humanos, incluindo as questões de identidade, de integridade genética e de tratamento desigual. O evento ocorreu em 2002, quando o cientista Ian Wilmut, mundialmente conhecido por clonar a ovelha Dolly, anunciou que um bebê humano também havia sido clonado.
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Outro famoso incidente que exigiu uma apreciação bioética foi o da norte-americana Terri Schiavo, em 2005, sobre Eutanásia e Suicídio Assistido. Terri Schiavo ficou em estado vegetativo persistente por 15 anos. Sua família discordou sobre a retirada da alimentação artificial que a mantinha viva. Isso gerou debates sobre a eutanásia, a qualidade de vida e a tomada de decisões médicas em nome de pacientes incapazes.
Como os exemplos citados demonstram, algumas das questões contempladas pela bioética exigem uma reflexão profunda e detida sobre os todos os interesses envolvidos, tendo sempre como perspectiva maior a proteção e a preservação da vida e do bem estar das partes envolvidas. Uma essa conciliação, muitas vezes, difícil de realizar.
Alguns casos também chamam atenção para a questão da vulnerabilidade de pessoas e de grupos diante dos interesses econômicos da indústria farmacêutica, sendo esse um dos temas mais relevantes discutidos na bioética e na saúde pública. Há algumas situações notórias que demonstram os riscos e os danos que diversas populações vulneráveis sofrem no contato com a ganância das grandes corporações que fabricam os medicamentos.
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Há também o caso da Contaminação Proposital dos Ianomami, no Brasil e na Venezuela, em 1960. No livro Darkness in El Dorado, o jornalista Patrick Tierney denunciou uma possível contaminação proposital de populações de indígenas ianomâmis, brasileiros e venezuelanos, com o microrganismo Edmonson B, que provoca sintomas semelhantes aos do sarampo. Os responsáveis pela inoculação teriam sido, segundo o livro, os membros da equipe do geneticista norte-americano James Neel, da Universidade de Michigan. O objetivo do estudo era avaliar as reações destas populações, então isoladas, no contato com uma nova doença contagiosa.
Outro exemplo de experimentação ilegal em populações vulneráveis é o das Experiências Genéticas na Guatemala, ocorrido entre 1940 e 1950, em que pesquisadores norte-americanos conduziram uma série de experimentos médicos, que incluíram a exposição proposital de pessoas a doenças infecciosas, como a sífilis e a gonorreia, sem que estas fossem informadas nem consentissem. Tais testes foram realizados em prisioneiros, pacientes de hospitais psiquiátricos e também em comunidades indígenas, contra a vontade dos indivíduos submetido a pesquisa. Embora as comunidades indígenas não tenham sido o único alvo dessas experiências, também foram fortemente vitimadas.
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Tantos os experimentos na Nigéria quanto os realizados no Brasil, Venezuela e Guatemala representam uma violação flagrante da Bioética e dos Direitos Humanos por interesses subalternos que se aproveitam da condição de pobreza, de marginalidade ou de isolamento de certos grupos. O mais triste é que, por mais chocantes que sejam, estes exemplos infames são apenas a ponta de um iceberg.
Quem imagina que a exploração e o abuso perpetrado por algumas empresas farmacêuticas se limitam aos mais pobres, engana-se, como ilustra o Caso Vioxx, ocorrido em 2004, quando a Merck retirou o medicamento Vioxx do mercado após estudos o associarem ao aumento no risco de ataques cardíacos e derrames. Na época, houve alegações de que a empresa tinha conhecimento desses riscos antes da sua retirada do mercado, e não os divulgou, para proteger os seus interesses financeiros.
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Esses casos destacam como os interesses econômicos da indústria farmacêutica afetam e comprometem a saúde pública, colocando as pessoas em situações de extremo risco.
Os antídotos para tais práticas antiéticas e ilegais seriam a vigilância da opinião pública e dos órgãos governamentais, a transparência, a pesquisa independente e uma regulamentação rigorosa. Porém, o poder e a influência econômica e política das corporações farmacêuticas minam e sabotam os sistemas de controle que poderiam limitar a sua atuação irresponsável.
A integridade das pesquisas farmacêuticas, das práticas médicas e da segurança dos pacientes só poderia ser garantida através de uma massa crítica que produzisse uma opinião pública atenta e consciente, o que significaria um risco generalizado, não apenas para o mercado de medicamentos, mas para todas as corporações em geral, que se empenham para que isso jamais aconteça, seja promovendo sistematicamente a desinformação ou subornando políticos e funcionários públicos.
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Os donos das fortunas que manipulam o poder político escarnecem das preocupações éticas e bioéticas. Eles e os seus aliados riem de um texto como esse. Mesmo sabendo que não podem comer dinheiro, continuam a canibalizar seus semelhantes. Para eles, cada ser vivo é apenas um insumo. Nada lhes importa senão o cifrão. Reduzem toda a vida a um bem de consumo ordinário, barato e descartável. Passam por cima de quem for e do que for. Queimam, poluem, extinguem, esgotam e matam, sem medida, como se não houvesse amanhã, e, dependendo apenas deles, não haverá mesmo. Só lhes importa a manutenção do controle que lhes garante cada vez mais dinheiro, e nada mais. São monstros suicidas predadores de todos e de si mesmos, porque quando não houver mais nada a destruir, eles mesmos serão consumidos.
Nenhuma mudança virá jamais de quem só valoriza radicalmente o dinheiro e despreza a vida. Somente a tomada de consciência por parte da maior parcela da população pode conduzir a uma transformação real e sustentável, mas esse é um movimento que só pode começar em cada consciência, individualmente.
O respeito pelos direitos e pela dignidade de todas as pessoas e seres deveria ser uma preocupação de todos, mas, infelizmente, só é para aqueles que estão despertos, que aprenderam que o mau feito contra os outros é sempre um
Julius Schnorr von Carolsfeld
Independentemente do seu status socioeconômico ou cultural, todos sofrem os efeitos deletérios da agressão ao ambiente e do desrespeito à vida e à dignidade dos outros; alguns instantaneamente, e, outros, somente depois, pois estão anestesiados pelo próprio egoísmo, que avança à maneira de uma lepra, afetando os nervos periféricos de suas almas e deixando-as insensíveis aos sofrimentos de todos os seres vivos. Por fim, a neuropatia espiritual que os impede de sentir a dor dos outros vai mutilá-los e também matá-los. Todo o seu enorme esforço de autopreservação então terá sido inútil, pois só é possível preservar a própria vida se a vida em geral for também poupada.
A Ética, que pode ser manifesta, ou não, na Moral, no Direito, na Deontologia ou na Bioética, é uma decisão pessoal, de foro íntimo. Em Atos 2:37, há o relato sobre uma pergunta feita pela multidão que pediu a morte de Jesus. Diante das palavras de Pedro, que chamaram a atenção para o fato de muitos dos que ali estavam terem pedido a execução de Um Inocente, os presentes, demostrando remorso, e com os corações compungidos, perguntaram: “Homens, irmãos, o que devemos fazer?”
A resposta do apóstolo não podia ser outra: “Arrependei-vos!”.
As atividades humanas, como o desmatamento, a poluição, a degradação dos habitats e as mudanças climáticas, aumentam significativamente a taxa de extinção das espécies em todo o mundo, e também massacram e fazem sofrer os próprios semelhantes, torturando-os junto com a natureza, os animais e os vegetais, nossos irmãos de jornada planetária. A vida, também crucificada, faz coro com Pedro: “Arrependei-vos!”