Deslizo sobre o meu velho caderno de receitas e me vejo repentinamente instalada na vitalidade de antigas cozinhas familiares, cujo po...

Gosto de Vida

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Deslizo sobre o meu velho caderno de receitas e me vejo repentinamente instalada na vitalidade de antigas cozinhas familiares, cujo poder de evocação vem da vida vivida ali, do afeto partilhado em singulares combinações de cores e odores, e dos sabores que dali saiam, até hoje incomparáveis, inesquecíveis. Não, não se falava em gastronomia, não havia supermercados. Minha tia comprava o “coxão” de porco no habitual vendedor de quem já era conhecida freguesa, e a batata doce, que tradicionalmente era seu acompanhamento, não podia vir de outro lugar que não daquele monturo acumulado no chão da feira pelas mãos de Manoel Cesário, que também vendia inhame e macaxeira, expostos do mesmo modo.

Marianna Portela
De páginas amareladas pelo tempo ou pelas manchas de velhos ingredientes, meu caderno de receitas me remete à festa daquelas antigas cozinhas; à reunião de mulheres de cuja inventividade e algum desvario nasciam possibilidades inexploradas na arte de cozinhar. Conta histórias também, que vão muito além das prescrições culinárias. Falam da ocasião festiva em que aquele doce ou salgado foi feito pela primeira vez, dão ao prato o nome de quem passou a receita (Torta Norma, Molho Gracinha) , dizem em lembretes e registros as predileções, favoritismos , preferências que animam desejos e expectativas e justificam a repetição da iguaria em cada festiva reunião familiar; guardam ainda, rabiscados aqui e ali, anotações de poemas ou músicas, sequelas certamente do estado de espírito desatado entre panelas, potes, formas, facas, colheres, fogo, flama, lume do forno, do fogão e do meu coração.

Um copo, um prato fundo, um pires, uma xícara, um punhado, uma pitada, eram os padrões de medida das receitas transmitidas oralmente que, sem exatidão, revelavam a excelência da cozinheira de “mão boa” que, intuitivamente, dosava os temperos, controlava o calor do fogão e dava expansão ao aroma que tomava a casa inteira, agudizando apetites e estimulando a gula. Comandadas por tia Dó, tia Lala, tia Lourdinha, as cozinhas eram redutos de delícias, paraísos de intensos paladares, sem os artifícios enganosos e obsessivos do “gourmet” de hoje.

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Daniel Lombraña González / Sue Thompson / Leigh Ann

O velho caderno que tenho em mãos, iniciado em 6 de janeiro de 1977, quando, com pouco mais de vinte anos morei em São Paulo, traz não somente sabores de outrora, mas aviva lembranças de alegres encontros, pormenores exaltantes de amizades que perduram até hoje, consolidadas por fraterno compadrio.

Não é à toa, penso, que escritores como Câmara Cascudo e Gilberto Freyre, assinalaram o valor que a cozinha tem para a formação da identidade cultural brasileira. Em nossos tempos bizarros, quando muitos incautos são enganados patrocinando insuportáveis pedantices como sábados gourmets ou domingueiras de alta gastronomia à beira mar, sinto falta, como Rubem Alves, do artesanato e da alegria da cozinha simples de antigamente.

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Neste 17 de agosto, quando se comemora o Dia Nacional do Patrimônio Cultural, o ritual das práticas culinárias desenvolvidas na cozinha de minha memória afetiva me remete à rica alquimia da qual o meu caderno de receitas é um testemunho vivo. Com suas nuances de lirismo e criatividade, seus acessos poéticos e cativadores, os saberes e fazeres ali inscritos expressam a enorme riqueza de uma arte chamada culinária, riqueza cultural que reclama insistente preservação, para que a vida não perca o tempero autêntico e a diversidade de sabores, que fazem dela um banquete a ser degustado com coragem e paixão.

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Luisella Planeta

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  1. 👏👏👏👏👏👏❤️❤️❤️❤️❤️✂️🧵🪡

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  2. Nevita escreve com a maestria necessária para tornar qualquer tema em algo interessante, ate o mais trivial. A beleza não está no tema, mas no conteúdo e na forma que ela consegue dar ao texto. Que leveza e precisão. Uma beleza. Parabéns!

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