Acabo de lembrar. Não fui à casa da Dona Conceição, de quem eu recebera o convite: “Venha para uma tapioca. Os meninos estão em João Pe...

Peço perdão

ditadura anos 1970
Acabo de lembrar. Não fui à casa da Dona Conceição, de quem eu recebera o convite: “Venha para uma tapioca. Os meninos estão em João Pessoa e querem rever os amigos de infância”. Diga-se desses meninos que um deles já então havia ultrapassado os 70 anos e, o outro, os 60.

Foram educados pela irmã como se filhos fossem. Tornei-me bem próximo do mais velho desde os idos de 1970, quando comungávamos as mesmas apreensões
com o presente e o futuro de uma Nação subjugada e amargurada.

Anos antes, esse meu amigo vira-se obrigado a largar um Curso de Veterinária, no Recife, para salvar a pele. Ocupava o cargo de tesoureiro, no Diretório dos Estudantes, quando os militares já autorizados pelo Ato Institucional nº 5, o mais draconiano dos decretos ditatoriais, desmobilizavam sindicatos e agremiações, prendiam lideranças e cassavam direitos políticos e estudantis.

Meu amigo perdera o de estudar. Avisado a bom tempo por alguém da família com posto de oficial do Exército, fugiu para seu pé de serra antes que fosse preso e torturado, como tanta gente o foi por lutar, apenas com a força das palavras, contra um regime que matava a liberdade e a esperança. Na verdade, ia além disso.

Em 1970, com pouco mais de 20 anos, eu já dava meus passos no jornalismo. De resto, estava duas vezes por semana na cidadezinha onde tivemos a infância inteira e os primeiros anos da adolescência a fim de, aos sábados e quartas-feiras, ministrar aulas a cinco turmas ginasianas de um colégio da Campanha Nacional das Escolas da Comunidade, criação do paraibano Felipe Tiago Gomes já então espalhada nos quatro cantos do Brasil.

ditadura anos 1970
ditadura anos 1970
ESQ: Alunos fazem fila para a entrada em uma das escolas da CNEC (1969) / DIR: Felipe Tiago Gomes / Fonte: História da CNEC
Era quase um voluntariado. O salário pequeno, simbólico, ficava num daqueles bares, ou nos arrasta-pés da Serventia e da Maloca. Todos os fins de semana, lá estava eu a rever, assim, os recantos da meninice, os velhos amigos e a buscar ambientes que, antes do bigode, me eram proibidos em razão da menoridade.

Namorávamos duas meninas da mesma rua e, algumas vezes, dividíamos os quatro o mesmo banco de praça. Animada e descontraída, a conversa transcorria, geralmente, sobre temas amenos e variados até por volta da meia-noite,
quando nos despedíamos: as garotas recolhiam-se ao santo recesso do lar enquanto a madrugada nos abria suas portas e outros braços.

Duas Marias, habitualmente, nos esperavam no balde do açude (quando a caminho do bairro da Serventia), ou na cabeça da Ponte (quando no rumo da Maloca) e, qualquer que nos fosse o destino, não iríamos dormir antes do Sol nascente. Um primo e dois amigos, alternadamente, hospedavam-me desde o sábado até a manhã da segunda-feira, ocasião do meu retorno a João Pessoa. Faltasse eu a um deles e lá vinha a reclamação dos pais “olheiros” e, também, com os tratos do meu, o que incluía o apelido doméstico: “Por que Tuta não veio?”. Ah, a velha e boa hospitalidade do interior...

Levamos algum tempo para descobrir como as namoradas sabiam com detalhes daquilo que delas escondíamos. Tinham nas empregadas de casa repórteres infalíveis, muito mais acreditadas do que os da velha mídia tendenciosa e venal. Jamais cantariam, como Sílvio Santos o fazia nas tardes de domingo: “O Médici é coisa nossa”. De todo modo, vivíamos para esses bons momentos num Brasil que, então, respirava o medo e a angústia.

Peço perdão à Dona Conceição e a seus meninos pelo esquecimento. Minha septuagenária memória, desgraçadamente, tem feito dessas comigo. Tem-me levado a perder belos e preciosos momentos, como este que me permitiria, na fase derradeira da vida, a volta ao passado e à juventude, mesmo que por um momento breve. Mesmo assim. O trabalho, nesse dia, tomou-me o tempo e a lembrança. Mas, se lhes serve de consolo, a falta me foi mais dolorosa.

Soube que me esperaram até meia-noite. E não duvido de que o tempo da espera tenha sido determinado pelo meu amigo, uma Borralheira com horário invertido e, assim, liberta depois das doze badaladas para a vida com seus encontros ditos e não ditos, seus banhos de lua e seus pecados veniais pois atinentes, naqueles tempos, à juventude, ao descompromisso e à ânsia de viver, apesar dos pesares.

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  1. Muito bom 👏👏👏👏👏👏🙏🙏🙏🙏🙏🙏🙏🪡✂️🧵

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  2. Sábio memorialismo, entremeando descrições da simplicidade interiorana, com procedente crítica a um período tétrico de nossa história.

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